As eleições não findaram com a reeleição da atual presidente da República, no último dia 26 de outubro. Pelo menos no universo particular da mídia corporativa brasileira, e em especial nos discursos, análises categóricas, supostas evidências, predições do caos e simulacro de jornalismo. Alguém precisa dizer, em português do Brasil, às empresas de comunicação e seus principais porta-vozes, que a disputa acabou – e a maioria dos eleitores reelegeu Dilma Vana Rousseff, com mais de 54,5 milhões de votos.
Faço essa estranha constatação depois de observar o comportamento dos principais jornais impressos do país, seus comentaristas e colunistas (e alguns telejornais importantes), na primeira semana após o segundo turno das eleições presidenciais. O tom é de disputa eleitoral ainda. No alvo, centro da furibunda oposição midiática, está Dilma e seu partido. O fervor oposicionista de fazer inveja aos partidos que sustentaram a candidatura do senador Aécio Neves.
A metáfora que representa à perfeição essa estranha simbiose da mídia com o simulacro de um partido político esotérico está publicada na Folha de S.Paulo (edição de 28/10/2014): na página A3, o leitor acessa a “Carta à presidente”, texto assinado pelo empresário Abílio Diniz, presidente da Companhia de Alimentos BRF. Ator político por excelência, e usando sua inconteste legitimidade, Diniz saúda a presidente reeleita, apresenta a agenda do setor produtivo que ele representa e lhe deseja “bom governo”, assinalando: “A campanha política acabou, hoje é a vida real. Passado não se esquece, mas manda a sabedoria que se olhe com determinação para o futuro, pois é nele que vamos viver e construir” (Fonte: http://migre.me/mCXj6). Diniz reconhece a proposta de diálogo feito pela presidente, incluindo-se na prosa: “Como vencedora é você quem tem a condição de promover a nova união dos brasileiros. Essa responsabilidade é sua, mas é também de todos nós, empresários, e de todos os cidadãos” (Fonte cit.).
Questionamento patético
Na direção oposta, na página anterior da mesma edição da Folha, os três colunistas em uníssono mantém a lógica da disputa num fantasioso (seria fantamagórico?) terceiro turno. Hélio Schwartsman (“Dilma 2, a revanche”: http://migre.me/mCXxH), Eliane Cantanhêde (“Nós contra nós”: http://migre.me/mCXDA) e Carlos Heitor Cony (“Dilma contra Dilma”: http://migre.me/mCXJT) não deixam por menos e partem para o ataque.
Schwartsman dispara: “No front político, além do sinal amarelo emitido principalmente pelos eleitores das regiões de maior dinamismo econômico, a administração deverá ser assombrada por uma espécie de crise permanente”. Cantanhêde mantém o ataque: “Por isso, as Bolsas despencam, o dólar dispara. Mas engana-se quem pensa que é só um chilique do mercado, como o das mocinhas do Leblon, sem consequências. Com a economia e a indústria vacilando, quem mais vai sofrer é o pobre, a classe C”. Mas é o centroavante Cony quem vai disparar a nova “bala de prata” validando a farsa da revista Veja (dois dias antes do pleito): “A começar pela corrupção, que recebeu uma bomba atômica nas vésperas do pleito. Ela foi acusada de ter tido prévio conhecimento do que se passava na Petrobras, um conhecimento que pode até ser considerado uma cumplicidade, dependendo da apuração honesta das graves acusações e suspeitas que, afinal, estavam na cabeça e na boca de boa parte da opinião pública”.
Carlos Heitor Cony aposta sua credibilidade e dá o tom daquilo que viria a ser considerado o desatino total, do ponto de vista da oposição liderada pelo PSDB: “A minúscula margem de votos que obteve contra seu adversário estará encravada em sua garganta pelos próximos quatro anos do novo mandato. Se não fossem as urnas eletrônicas, que até prova em contrário são confiáveis, haveria elementos para a recontagem de votos”.
Cony, Cantanhêde e Schwartsman representam o coro de vozes da mídia, que também ecoou na forma de editoriais e convergiu, de forma geral. Não dialogam com ninguém e “pregam para convertidos”. Colunistas d’O Estado de S.Paulo, O Globo, Correio Braziliense e Valor Econômico mantiveram a “chama do terceiro turno” acesa. É o caso, por exemplo, de Rosângela Bittar, chefe da Redação do Valor, em Brasília. Em sua coluna “Dilma queima a largada” (29/10/2014, p. A10), Bittar escreve, entre acusações de que a presidente “abandonara o governo há quatro meses”, desprovida de qualquer fundamento nos fatos: “Do plebiscito da reforma política para o plebiscito – ou o decreto, ou a medida provisória – do controle da mídia será um pulo”.
Evidentemente que a mídia não joga sozinha. O PSDB apostou em dois factoides: o primeiro com o discurso do senador Aloysio Nunes, companheiro de chapa de Aécio Neves; o segundo, através do pedido de auditoria do resultado eleitoral, assinado pelo deputado federal Carlos Sampaio (PSDB-SP), que apresenta como “provas” posts publicados nas redes sociais de partidários seus com estapafúrdias acusações de fraude no sistema de urnas digitais do Tribunal Superior Eleitoral.
Neste segundo caso, é a voz insuspeita do blogueiro e colunista Ricardo Noblat (O Globo) que analisa: “O PSDB perdeu a eleição presidencial por pouco, mas não precisava perder a cabeça. Parece ter perdido. O partido pediu oficialmente ao Tribunal Superior Eleitoral uma auditoria especial nos resultados das eleições deste ano. Por que? Embora faça questão de dizer que confia na Justiça, o PSDB alega que manifestações em redes sociais questionam o processo eleitoral. Sim, foi isso mesmo o que você leu: manifestações em redes sociais questionam o processo eleitoral. Questionam também se o homem pisou na lua. E se Bin Laden de fato está morto” (Fonte: http://migre.me/mCYRW).
Desconstrução do negócio
O fato mais preocupante, contudo, é o discurso do senador Aloysio Nunes (PSDB/SP), vocalizado da tribuna do Senado Federal, em 28/10: “O candidato derrotado a vice-presidente na chapa de Aécio Neves, e líder do PSDB no Senado, Aloysio Nunes Ferreira, declarou que não aceita a proposta de diálogo tal como formulada pela presidente Dilma” (Fonte: http://migre.me/mCZ7t). Abrindo mão de seu papel institucional – afinal cabe a oposição apresentar caminhos alternativos e disputar propostas com a situação, em respeito aos 51 milhões de eleitores que votaram em Aécio Neves –, o senador tucano prefere optar por um discurso obtuso, alegando que a Presidente reeleita “não tem autoridade moral para pedir diálogo com ninguém. Comigo não!”, justificando que fora alvo de ataques “nas redes sociais” – como se a sua coligação eleitoral não tivesse usado do mesmo e condenável expediente contra sua adversária. Foi acompanhado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no Estadão: “Diante do apelo ao diálogo da candidata eleita devemos responder com desconfiança” (p. A2, 02/11/2014).
O jornalista Rogério Gentile (“Arrogância na derrota”, Folha de S.Paulo, 30/10/2014) joga luzes sobre as explicações do tucanato nacional para a derrota no segundo turno. A primeira razão “atribui o resultado ao tom agressivo da campanha de Dilma, como se isso tivesse sido uma prerrogativa do PT. Não foi, obviamente. O PSDB também bateu duro nos adversários” (Fonte: http://migre.me/mCZE2). A segunda, “aliados de Aécio reclamam que ‘Minas falhou com um grande estadista’ e que os ‘mineiros não quiseram ter um presidente na linha de JK’. O PSDB, que esperava obter 2 milhões de votos a mais do que Dilma no Estado, perdeu em 608 das 835 cidades, em várias delas por mais de 80% dos votos. Ou seja, para os tucanos, a derrota não foi motivada por erros do candidato ou do partido, tampouco ocorreu por mérito da adversária. A culpa, ora bolas, é do eleitor”.
No outra ponta do debate posto, no seio da própria mídia, para “fechar no clima de disputa do terceiro turno”, essa responsabilização do leitor/eleitor é também exposta pela ombudsman da Folha de S. Paulo, Vera Guimarães Martins (“Apuração por telefone sem fio”, 2/11/2014, p. A6). Vera tenta defender o indefensável na decisão política e editorial do jornal de repercutir a peça eleitoral (não dá para classificar como reportagem, a meu juízo) da revista Veja. Em sua edição de sábado (25/10/2104, um dia antes do segundo turno) a Folha estampou em manchete: “Doleiro acusa Lula e Dilma, que fala em terror eleitoral”. Supostamente, duas fontes off confirmaram que o doleiro-delator havia feito tal acusação (algo negado, com veemência por seus advogados, indicando que tal depoimento nunca existiu). Escreve Vera, aprovando: “Atitude tecnicamente correta, mas que não livra o jornal do pecado original, a fragilidade de uma acusação baseada em declaratório sem provas” (Fonte: http://migre.me/mCZZS). Com efeito, a ombudsman admite que “a Folha também não encontrou nenhuma fonte que confirmasse a teoria (da existência do tal depoimento) – grifo nosso)”.
Vera Guimarães Martins conclui seu texto jogando a “bomba” no colo do seu leitor. Sem ter como justificar, do ponto de vista jornalístico a publicação do material publicitário de Veja, a jornalista decide consultar os leitores da Folha: “Sugiro o dilema: você, leitor, publicaria, mesmo com as deficiências aqui expostas, ou preferiria abrir mão, enfrentando suspeitas de ter se omitido para beneficiar este ou aquele candidato?” (Fonte cit.).
Assim se fecha a primeira semana do terceiro turno das eleições entre a mídia e a sociedade brasileira. Sim, porque sem partidos nem candidatos concorrentes, indica caminhos nebulosos, para além do limite da irresponsabilidade que os empresários da comunicação e seus porta-vozes mais notórios têm para com o futuro da democracia e da história do Jornalismo, no país. A julgar pelo tom e nível de decibéis, o terceiro turno se arrastará até outubro de 2018. A desconstrução do próprio negócio, com a erosão da credibilidade é algo que só diz respeito aos empresários e investidores das empresas jornalísticas. Mas, o Jornalismo é um patrimônio da sociedade e como tal deveria ser preservado desse tipo de aventura insana. A ver.
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Samuel Lima é professor da Universidade de Brasília (FAC/UnB), pesquisador do objETHOS/UFSC