Ênio Silveira foi, talvez, o mais importante editor brasileiro de todos os tempos. Sob a sua direção, a Editora Civilização Brasileira tornou-se, nos anos 1960, a mais atuante e a mais relevante editora do país, publicando o melhor da literatura estrangeira – muitas vezes pela primeira vez no país –, destacados autores nacionais e uma ampla gama de obras de ciências humanas – história, sociologia, política, economia – e livros de intervenção política, contribuindo para que circulassem e fossem debatidas aqui as principais ideias e temas da atualidade.
Esta era preocupação básica de Ênio: proporcionar o debate de ideias e dar a conhecer ao país os autores que em todo o mundo apresentavam novos enfoques e novas questões para fazer avançar a democracia, a liberdade e o fim da pobreza no Brasil e no mundo. Integrou como poucos em seu trabalho a edição de livros ao engajamento político, proporcionando como resultado algo que era maior do que a simples soma dessas duas atividades.
Se ainda aqui estivesse, Ênio completaria esta semana 89 anos – nasceu em novembro de 1925 e morreu em 1996. Ele mostrou que era possível ser um editor engajado politicamente nas lutas de seu tempo – foi militante do Partido Comunista Brasileiro – sem ser sectário; que era possível construir uma grande editora de esquerda, de marcado caráter cultural e político, que também fosse rentável economicamente; e que a ação de um editor podia incidir diretamente na realidade de um país.
No começo, orelhas de livros
Ênio começou a trabalhar em 1943 na Companhia Editora Nacional, por indicação de Monteiro Lobato, que era amigo de seu pai, Valdomiro Silveira. Redigia orelhas de livros, entre outras coisas. Gostou do trabalho e, em 1946, interrompeu o curso na Escola de Sociologia e Política de São Paulo para estudar editoração na Universidade Columbia, nos Estados Unidos. Lá, trabalhou como estagiário na Editora Alfred Knopf. E manteve contatos com o Partido Comunista Americano, consolidando sua opção política de esquerda.
Em 1951, assumiu a direção da Civilização Brasileira, que na época pertencia à Companhia Editora Nacional, cujo proprietário era Octalles Ferreira – de quem Ênio havia se tornado genro, pois casara com Cleo, filha de Octalles. A Civilização Brasileira já existia desde 1929, mas será partir da gestão de Ênio que se tornou uma grande editora, passando a editar as obras que seriam sua marca registrada: grandes nomes da literatura internacional (como James Joyce, Hemingway, Scott Fitzgerald, Herman Hesse e Aldous Huxley, entre muitos outros), autores nacionais de destaque (Celso Furtado, Antonio Callado, Stanislaw Ponte Preta) e obras referenciais de ciências humanas e atualidades (Marx, Lênin, Gramsci, Sartre, Adam Schaf, Roger Garaudy).
Ênio também inovou no aspecto estético dos livros, investindo em capas e projetos gráficos mais modernos e ousados, que estiveram sob a responsabilidade de Eugênio Hirsch e Marius Lauritzen Bern durante anos. O êxito representou o crescimento da editora, que no começo dos anos 1960 publicava cerca de 20 livros por mês, ou seja, quase um livro a cada dia útil.
Nesse período, Ênio já havia se tornado proprietário da Civilização Brasileira, pois comprara a parte antes pertencente a Octalles Ferreira.
“Cadernos do Povo Brasileiro”
Entre 1962 e 1964, durante o governo de João Goulart, a Civilização Brasileira lançou, em parceria com o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e o Centro Popular de Cultura da UNE, a coleção “Cadernos do Povo Brasileiro”, cujo lema era: “Somente quando bem informado é que o povo consegue emancipar-se”. A coleção, dirigida por Ênio Silveira e Álvaro Vieira Pinto, tinha um claro objetivo político ao trazer para discussão temas polêmicos, ligados diretamente ao debate em torno das “reformas de base”, tratados sob um enfoque progressista, de esquerda, o que os tornava importantes instrumentos nas intensas lutas políticas que se travavam no país naqueles anos. Alguns dos títulos publicados mostram o caráter de intervenção que a coleção tinha: Que são as Ligas Camponesas?, de Francisco Julião; Quem é o povo no Brasil?, de Nelson Werneck Sodré; Quem dará o golpe no Brasil?, de Wanderley Guilherme dos Santos; Como seria o Brasil socialista?, de Nestor de Holanda.
Em 1963, Ênio foi um dos articuladores, ao lado de Oscar Niemeyer, Nelson Werneck Sodré, Osny Duarte Pereira e Moacyr Felix e outros, da criação do Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI), que reuniu cerca de 400 intelectuais e visava lutar pelas reformas sociais no país e contra as ameaças ao regime democrático que já se manifestavam.
Consolidava, assim, seu papel – e de sua editora – como um dos articuladores dos setores progressistas e de esquerda no Brasil, no campo intelectual e político. A Civilização Brasileira atuava como importante suporte para aglutinar esses setores e divulgar suas propostas.
O golpe e as perseguições
Com sua proximidade com o PCB e o engajamento ao lado de Jango, Ênio Silveira foi perseguido após o golpe de 1964. Seu nome fazia parte da primeira lista dos cassados, ao lado de outros expoentes da intelectualidade, como Josué de Castro, Celso Furtado e Darcy Ribeiro.
Em maio daquele ano, Ênio manifestou-se – da forma que podia – contra o golpe. Colocou, na fachada da editora, uma faixa em que se lia: “A poesia é a arma do povo contra a tirania”.
Um ano depois do golpe, Ênio já respondera a cinco IPMs – os famigerados Inquéritos Policias Militares instaurados às centenas pelos novos donos do poder para intimidar pessoas e desmantelar associações que haviam apoiado as reformas de base e o governo Jango. Além disso, fora preso por nove dias por “crime de subversão”, respondia a processo criminal pela mesma acusação e muitos livros da Civilização Brasileira eram regularmente apreendidos por serem considerados subversivos.
Mas era difícil intimidá-lo. Tanto é assim que em julho de 1964 lança o livro O ato e o fato, de Carlos Heitor Cony, uma coletânea de crônicas fortemente críticas ao golpe e à nova situação política do país. E em 1965 surge a Revista Civilização Brasileira, que até 1968 foi uma publicação que reuniu setores de esquerda derrotados com o golpe e que buscavam resistir, além de publicar também o que havia de mais recente no pensamento crítico e progressista em nível internacional. Seu programa era socialista, nacionalista e anti-imperialista, aberto a diversas linhas de pensamento dentro desses campos. As 25 edições da Revista Civilização Brasileira (22 números e 3 cadernos especiais) tornaram-se antológicas e são até hoje estudadas como exemplo de periódico intelectual e político de esquerda no país.
A revista sofreu pressões e censuras do governo, e deixou de circular após o AI-5, em 1968. As pressões contra a editora eram também de natureza econômica, e vinham desde 1964. Como lembra Andrea Galúcio, em sua excelente tese sobre as editoras Civilização Brasileira e Brasiliense, “a partir de 1964 houve restrição ao crédito bancário que era importante para editora, uma vez que ela não contava com capital de giro suficiente para as importações de papel. A solução encontrada para este problema foi a venda antecipada de edições com desconto, o que acabou por reduzir o lucro e consequentemente a capacidade de investimento”. Assim, em 1966 houve o primeiro pedido de concordata. Ênio teve que vender boa parte de seu patrimônio pessoal para pagar dívidas e reerguer a editora.
Diante das perseguições e pressões – entre as quais os atentados contra Civilização Brasileira, na Rua 7 de Setembro, no Rio, em outubro de 1968 e no começo dos anos 1970 –, a empresa pediu uma segunda concordata preventiva nesse último ano. Outro atentado ainda ocorreria em 1976.
A década de 1970 seria de dificuldades econômicas e políticas, mas a editora manteve-se ativa e importante. Em 1978 retomou a publicação de uma revista intelectual e política, nos moldes da Revista Civilização Brasileira, mas rebatizada como Encontros com a Civilização Brasileira. E na primeira metade dos anos 1980, ainda mantinha um ritmo de 200 títulos editados por ano.
O legado de Ênio Silveira
Mas a dificuldades financeiras não foram superadas. Em 1985, Ênio vendeu 80% da Civilização Brasileira para o banqueiro e editor português Manuel Bulhosa, dono das editoras Difel e Bertrand. Este comprometeu-se a não desvirtuar a linha editorial da Civilização Brasileira – o que de fato ocorreu – e manteve Ênio como diretor da casa. Pouco depois, ele vendeu suas restantes ações ao mesmo Bulhosa, tornando-se apenas assessor da editora até a sua morte, em 1996.
Poderíamos ainda falar de outras facetas da atuação de Ênio Silveira, como a fundação da revista e da editora Paz e Terra (que depois passou às mãos de Fernando Gasparian, outro grande editor brasileiro), de seu trabalho como tradutor, de sua atuação como diretor do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, de suas “Epístolas ao marechal Castello Branco”, entre outras coisas.
Mas esse esboço de figura de Ênio Silveira nos dá uma ideia de sua trajetória. Aliás, em 1965 ele assim se autodefinia:
“Sou brasileiro, democrata e editor”. E completava: “[…] procurei colocar minha atividade editorial a serviço do que ditava a minha condição de patriota e de democrata, promovendo o lançamento de estudos, ensaios e pesquisas sobre o complexo drama brasileiro, garantindo a seus autores uma plataforma independe para divulgação de ideias independentes”.
Em seus mais de 50 anos dedicados à edição – de 1943 a 1996 – Ênio Silveira construiu um novo patamar para a ação editorial no Brasil. Não se pode falar do campo editorial em nosso país sem destacar a sua ação à frente da Civilização Brasileira. Ele dinamizou a edição literária e política, modernizou a apresentação gráfica dos livros, patrocinou um programa editorial de esquerda, progressista, não partidarizado ou sectário, construiu uma grande casa editorial, das maiores do país em seus melhores tempos e, principalmente, foi firme e coerente na defesa de suas ideias e princípios, que se refletiam com clareza na linha editorial implementada.
Algumas obras de referência sobre a Editora Civilização Brasileira:
FELIX, Moacyr (org.). Ênio Silveira: arquiteto de liberdades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
ALMEIDA, Marta de Assis et alii. Enio Silveira. São Paulo, Com-Arte/Edusp, Coleção Editando o Editor (coord. Jerusa Pires Ferreira), v. 3, 1992.
VIEIRA, Luiz Renato. Consagrados e malditos: os intelectuais e a Editora Civilização Brasileira. Brasília, Thesaurus, 1998.
GALÚCIO, Andréa Lemos Xavier. Civilização Brasileira e Brasiliense: trajetórias editoriais, empresários e militância política. Niterói, tese de doutorado em História, Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense, 2009.
SILVEIRA, Maria Rita Jobim. A Revista Civilização Brasileira: um veículo de resistência intelectual. Rio de Janeiro, dissertação de mestrado em Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2007.
CZAJKA, Rodrigo. “Ênio Silveira, o epistolário a Castelo Branco e o delito de opinião”. Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina. Grupo de Estudos de Política da América Latina, 10-13/09/2013. Disponível em: http://www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/v10_rodrigo1_GVIII.pdf.
LOVATTO, Angélica. “Um projeto de revolução brasileira no pré-1964: os Cadernos do Povo Brasileiro”. In: DEAECTO, Marisa Midori; MOLLIER, Jean-Yves (orgs.). Edição e revolução: Leituras comunistas no Brasil e na França. Belo Horizonte/São Paulo, UFMG/Ateliê, 2013, p. 153-182.
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Flamarion Maués é historiador, autor de Livros contra a ditadura: editoras de oposição no Brasil, 1974-1984 (Publisher, 2013), pós-doutorando na Universidade de São Paulo, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).