ELEIÇÕES 2006
Gabriel Manzano Filho
De Kennedy até hoje, a receita é não errar
“Se o presidente Lula e seu rival Geraldo Alckmin pudessem fazer um pedido, talvez gostassem de ser, apenas esta noite, John Fitzgerald Kennedy. Jovem, bonitão, com boa voz e muito carisma, Kennedy era o candidato do Partido Democrata dos EUA, em 1960, e fez do primeiro debate presidencial pela TV uma inesquecível aula de política.
No acanhado palco de uma TV de Chicago, ele ignorou o rival republicano, Richard Nixon, e o mediador do confronto. Fixou-se quase o tempo todo na luzinha vermelha, falando olho no olho para 75 milhões de americanos. Plantou ali sua marca de líder, ganhou as eleições e abriu um reluzente caminho para marqueteiros e assessorias pelo mundo afora. Dali por diante – como se verá novamente esta noite, em São Paulo – o que dizer, como dizer, o gesto calculado e outros truques foram transformados em armas, em votos, em vitória.
E naquela mesma noite, 26 de setembro de 1960, começou também a guerra contra o marketing político. ‘Televisão é um meio muito bom para vender personalidades… e não parece que sirva para muitas outras coisas’, sentenciava depois do programa um respeitado crítico, Hallock Hoffman. Outro, Henry Steele, ia mais longe: ‘Esperemos que esses debates na TV sejam eliminados de futuras campanhas. Essa fórmula é montada para corromper o julgamento público e, por fim, todo o processo político.’
Se alguém duvida de Hoffman e Steele, pode conferir os conselhos dados aos debatedores por um expert nas malandragens dos marqueteiros, o prefeito Cesar Maia, em seu ex-blog. Um deles: ‘Não arredonde os números: use os números reais quebrados, que têm muito mais credibilidade.’ Outro: ‘Pergunte algo insípido e técnico num campo que você domina bem, e em sua réplica dê uma aula.’
Mas as queixas morreram e a idéia vingou. Os presidentes Ronald Reagan e Bill Clinton dela se valeram para nocautear seus adversários, em noites memoráveis da história política americana. ‘Para decidir seu voto, veja se sua vida está melhor hoje do que há quatro anos’, pedia Reagan em 1981, sepultando eleitoralmente o rival Jimmy Carter. Clinton, já nos anos 90, passeava pelo palco, leve e solto, falando fácil, enquanto George Bush (pai) era flagrado pela TV olhando o relógio com impaciência. Mais comportados e sem charme, os debates da Europa tiveram bons confrontos entre François Mitterrand e Giscard d’Estaing, na França – mas isso foi uma exceção ao aborrecimento geral.
Os europeus têm suas razões para rejeitar a TV como veículo para discussões sérias: lá o jogo é outro e frases de efeito ou promessas grandiosas podem pegar mal. Mas num sistema político chegado ao espetáculo, como o do Brasil, a receita tem tudo para pegar, ainda que o excesso de partidos e o gosto por regulamentar tenham dado a tais encontros, como diz o cientista político Bolívar Lamounier, ‘uma lamentável cara de evento ginasiano, os candidatos como alunos e o moderador como mestre-escola’. Debates agressivos incomodam, admite Bolívar, ‘mas as tevês e a Justiça Eleitoral desandaram a regulamentar tudo e erraram a mão’.
Ainda assim a estréia do modelo, em 1981, até que foi boa: o candidato a governador de São Paulo, Franco Montoro (PMDB), disparou um histórico ‘cala a boca!’ contra Reinaldo de Barros (PDS), que o acusava por ter ‘cinco, cinco, aposentadorias!’. Só em dezembro de 1989, no confronto entre Lula e Fernando Collor, os debates ganharam drama e prestígio. Era a primeira eleição de presidentes desde 1960 e Collor, mantendo perto de si uma pasta cheia de papéis, acabou com o sistema nervoso do rival. No dia seguinte, uma edição do debate na TV Globo, favorável a Collor, ajudou-o a vencer a briga.
Com o tempo, o eleitor brasileiro decidiu que essas noites são decisivas. ‘Mas ele percebe os truques e sabe filtrar o que é mostrado’, afirma a analista Fátima Pacheco Jordão. No correr da campanha, ‘o cidadão vai detectando os truques, as entrevistas em que gente na rua dá entrevistas decoradas. Ele vê o debate para descobrir fraquezas, uma brecha, uma pegadinha.’
E os erros podem ser fatais. Fernando Henrique Cardoso desabou quando Bóris Casoy lhe perguntou se acreditava em Deus. Todos riram de Lula em 2002, quando Garotinho lhe aplicou uma pegadinha sobre a Cide, um imposto que ele achou que era uma autarquia. Guilherme Afif atrapalhou-se todo em 1989, quando Mário Covas lhe perguntou porque não aparecia na Câmara. Como adverte César Maia, ‘debate ninguém ganha, mas quem escorregar feio pode se perder’.”
STATE OF DENIAL
David Carr
O jornalista que fura o próprio jornal
“THE NEW YORK TIMES – Poucos acontecimentos em Washington, exceto as flores de cerejeira e os escândalos com estagiários do Congresso, chegam com tanta regularidade como um livro-sensação de Bob Woodward. Ano sim ano não, Woodward, possivelmente o jornalista de maior prestígio das três últimas décadas, emergirá de seu quartel-general em Georgetown com um livro repleto de intrigas federais, fontes folheadas a ouro, e as artes ocultas de Washington.
Em poucas horas, várias partes ofendidas surgirão para dizer que não foram citadas corretamente on the record (com divulgação autorizada pela fonte) e foram mal caracterizadas pelos que falaram em off (com a condição de não divulgação da identidade), e programas de entrevistas na televisão ficarão concentrados no último produto de Woodward. Desta vez, a bonança de marketing precedeu a data de publicação do livro State of Denial (Estado de Negação) na segunda-feira passada, já que The New York Times e The New York Daily News obtiveram cópias na semana anterior.
Perdendo a divulgação exclusiva, The Washington Post, o lar profissional de Woodward – ainda que ele não o visite com muita freqüência -, foi deixado na pior, assim como a administração do presidente George W. Bush. Este foi o terceiro livro de Woodward sobre o segundo mandato de Bush. Depois de duas incursões amistosas – Bush em Guerra (Editora Globo) e Plano de Ataque (Editora Arx) -, ele resolveu atirar uma granada bem no coração do governo.
As pessoas negociam com Woodward porque quando ele é bom, é muito, muito bom. Mas, como um exército de um homem só, com um nome que tem sua própria influência na consciência americana, ele pode fazer o que bem quiser, escrevendo seus livros, indo à televisão, aparecendo no jornal quando uma história esquenta.
Os críticos já disseram que ele perdeu a história de Bush quando estava no meio dela. Mas seu trabalho não está tanto além das conseqüências quanto acima delas – mantido nas alturas por sua carreira espetacular e por um contrato com os leitores no qual garante que os levará além da ante-sala.
Blogs e podcasts podem ser o futuro, mas por enquanto as manchetes ainda vêm de um dos grandes nomes do jornalismo, trabalhando nos limites abafados de um livro de capa dura. O vazamento – segundo o qual a então conselheira de Segurança Nacional Condoleezza Rice recebeu, dois meses antes do 11/9, informações da CIA indicando um possível ataque da Al-Qaeda aos EUA – certamente não foi nenhuma crise para Woodward, que acabou dando uma primeira mordida na maçã.
No Washington Post, a experiência de ter perdido o primeiro furo da obra de seu mais ilustre repórter (um excerto apareceu finalmente no domingo passado) é provavelmente mais doce que amarga.
Afinal, ter Woodward como um ornamento de capô na empresa, mesmo que economize os furos mais lustrosos para seus livros, tem suas compensações. No domingo passado, Woodward estava de saída, mas arranjou um tempo para dizer que o relacionamento é de benefício mútuo: ‘O Washington Post é um grande jornal. Temos os melhores donos e os melhores editores. Estar lá me ajuda bastante e, embora eu me concentre em livros, faço o melhor que posso para ajudá-los em troca.’
É um casamento de uma conveniência muito moderna, uma troca de marcas que tem pouco a ver com uma relação tradicional empregador-empregado. Num tempo em que os jornais andam ansiosos para chamar a atenção, eles agarram o que podem. ‘É uma acomodação que o Post fez, e eles parecem felizes com o arranjo’, disse Edward Wasserman, um professor de ética jornalística na Universidade Lee, em Washington. ‘O importante é que cada um entre com os olhos abertos, mas persiste o fato de que, pelo arranjo, informações extremamente dignas de notícia reunidas por um de seus principais editores não estão entrando no jornal.’
O livro de Woodward não foi o único de um editor do Washington Post que fez notícia no domingo passado. Soldier: The Life of Colin Powell (Soldado: A Vida de Colin Powell), de Karen DeYoung, editora associada do Post, teve um excerto publicado na revista Sunday do jornal. Ele revela que em seu último encontro com o presidente, o então secretário de Estado preveniu sobre os perigos que o governo enfrentaria no Iraque.
Em agosto, Fiasco: The American Military Adventure in Iraq (Fiasco: A Aventura Militar Americana no Iraque), livro do correspondente do Post no Pentágono, Thomas E. Ricks, levou a história para fora do jornal também. Boa parte das grandes notícias, hoje, parece estar saindo em livros, um desdobramento perturbador sinalizando que alguma parte da história não está chegando ao jornal diário. ‘Leva muito tempo para deslindar essas coisas’, disse Woodward. ‘Não se consegue fazer isso numa base diária.’
Mas o livro como veículo noticioso também cria uma questão de custódia e administração – tanto Ricks como Woodward foram repreendidos por seu editor-executivo por coisas que disseram na TV para promover seus livros. O Post não é o único irritado com a questão. O New York Times teve de negociar com seu próprio repórter, James Risen, a respeito da reportagem sobre escutas domésticas de conversas telefônicas que ele usou em seu livro, State of War (Estado de Guerra).
Ninguém compreende o primado contemporâneo da marca individual mais agudamente que Woodward, que gerencia o lançamento de seus livros com habilidade e ferocidade competitiva. Para o público, ele continua sendo o BMOC (‘big man on campus’, ou manda-chuva do pedaço) em Washington, um jornalista que depôs um presidente (Nixon) e parece pronto a mutilar outro.
‘O que os americanos vêem em Bob Woodward é um sujeito que busca uma média de acertos maior que a de qualquer outro no ramo’, disse Marc Fisher, um colunista do Washington Post.
A realização jornalística propriamente dita em State of Denial é menos que grandiosa. Ele precisou de três livros para chegar a uma conclusão que milhares de blogueiros de porão sugeriram há anos: a de que o governo Bush é formado por gente que gosta da guerra, não parece ser muito boa nisso, e tem sido conhecida por apontar os revólveres uns contra os outros. Essa epifania não parece refletir um repórter que teve um acesso privilegiado.
Considerando o apetite generalizado por informações públicas sobre assuntos privados, nem os mais doentios especialistas políticos conseguem resistir à leitura de como Powell se tornou a carta fora do baralho ou quando exatamente o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, começou a apunhalar Condoleezza Rice pelas costas. Isso não está longe dos desacertos entre Paris e Nicole (dupla de uma série da TV americana), com menos explosões fashion e mais documentos políticos. Depois de muitos anos desmistificando instituições como a Suprema Corte e o Pentágono, Woodward se tornou um jornalista-celebridade que transforma figurões de Washington em celebridades.
‘Woodward parece saber que a pergunta ‘Como eles são de verdade?’ repercute, esteja você falando de Tom Cruise ou de Donald Rumsfeld’, disse Todd Gitlin, um professor de jornalismo e sociologia na Universidade de Colúmbia.
Paul Begala, um ex-assessor do ex-presidente Bill Clinton e estrategista democrata que apareceu em livros anteriores de Woodward e os usa nas aulas que dá em Georgetown, disse que os livros continuavam preocupando Washington porque tinham a virtude de ser profundamente apurados, ainda que as fofocas não façam nenhum mal.
‘O fato é que um sujeito que escreveu sobre este governo nos termos mais vibrantes imagináveis, agora adota uma visão muito diferente, mas, em certo sentido, esta é uma jornada em que a maioria dos americanos está metida também’, disse Begala.
State of Denial é um pouco como ver uma bolinha de gude rolando para fora da mesa. Pode-se argumentar que o último livro que Bob Woodward escreveu sobre o governo Bush deveria ter sido o primeiro. Só a passagem do tempo permite o tipo de consideração que leva a narrativa histórica além do status de esboço.
Woodward acabou respirando o mesmo ar e documentos secretos que suas fontes ilustres, compartilhando, não expondo, o pensamento do grupo. Enquanto isso, Seymour M. Hersh, seu contemporâneo jornalístico e competidor, gastou tempo trabalhando com generais descontentes e raposas velhas de governo para o que muitos consideram fins investigativos mais substanciais.
‘Alguns acharam que os livros mostravam Bush como um líder forte porque essa era a evidência da época; outros tiraram conclusões inversas’, disse Woodward. ‘Mas é tolice criticar um livro por tratar de coisas que não aconteceram ainda. Bush em Guerra e Plano de Ataque cobriram o período de 11 de setembro de 2001 a março de 2003. O novo livro começa a partir daí.’
Uma das principais descobertas de Woodward foi que Rumsfeld não era o produto que ele inicialmente descrevera. Em Bush em Guerra, de 2002, Rumsfeld era descrito como ‘elegante, intenso, bem educado com um pendor intelectual, espirituoso com um sorriso contagiante’. Em Plano de Ataque, de 2004, ele era um líder cuja ‘linha de conduta estava clara, e ele era preciso sobre ela’. Em State of Denial, ele é um sujeito obcecado por controle e influência cuja ‘microgestão foi quase cômica’.
Dada a tendência de Woodward de encher seus livros com detalhes minuciosos, ele sustenta que as sementes de disfunção já estavam visíveis em seus dois livros anteriores. Mas o tempo que Woodward passou vivendo no topo das árvores parece tê-lo cegado para o fato de que a floresta embaixo estava em chamas.
‘Um livro tem um alcance muito mais longo que um dia’, disse David Rosenthal, vice-presidente executivo da Simon & Schuster, a editora de State of Denial. ‘Mas ele está à venda há um dia, já está causando tumulto, dominando os programas matinais de domingo, e determinará a agenda por semanas. O interessante para mim é que, numa era de blogs, web e correio eletrônico, um livro, algo que é fundamentalmente uma tartaruga, muito esquisita à sua maneira, pode carregar o maior imediatismo.’
TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK”
RÚSSIA
O Estado de S. Paulo
Jornalista russa crítica de Putin é assassinada em Moscou
“A jornalista russa Anna Politkovskaya, de 48 anos, uma das maiores críticas ao governo de Vladimir Putin, foi encontrada morta a tiros ontem, no elevador do edifício onde morava, em Moscou. Junto ao corpo, atingido por vários disparos e descoberto por uma vizinha, foram encontradas uma pistola e diversas cápsulas de munição. A polícia procura um jovem magro e de estatura mediana, que foi visto deixando o edifício antes de o corpo ser encontrado.
Implacável opositora da política de Putin para a Chechênia, Anna acusou várias vezes os serviços secretos russos de tentarem assassiná-la. Denunciou também ameaças de morte por parte do Exército e de outros organismos de segurança estatal, criticados com dureza em quase todos os seus artigos.
Durante a crise dos reféns tomados por seqüestradores chechenos numa escola de Beslan, em 2004, no território russo da Ossétia do Norte – cuja operação de resgate pelas forças russas resultou na morte de 344 civis, incluindo 186 crianças -, Anna acusou o governo russo de tentar envenená-la. Ela voava para Beslan onde ajudaria na mediação da crise, mas sentiu-se mal, perdeu a consciência e teve de ser internada após ter tomado um chá no avião. Anna nunca chegou à escola e o Comitê de Proteção de Jornalistas da Rússia jamais conseguiu determinar a causa do mau súbito.
No ano passado, Anna lançou o livro Putin’s Russia, no título em inglês, no qual expõe os erros do Kremlin na condução dos conflitos no Cáucaso Norte e na Chechênia, além de denunciar violações de direitos humanos cometidas por agentes e militares russos. O livro não tem tradução para o português, mas grandes livrarias importaram a edição em inglês, vendida por cerca de R$ 80,00 por exemplar.
Em suas reportagens, ela descreveu torturas, execuções em massa, seqüestros e a cobrança de resgate pago por parte de soldados russos por cadáveres de rebeldes chechenos para que suas famílias pudessem enterrá-los de acordo com as tradições muçulmanas.
Filha de diplomatas soviéticos ucranianos que trabalhavam na sede da ONU, Anna nasceu em Nova York. Voltou a Moscou ainda criança e cursou jornalismo na Universidade do Estado. Desde 1999, escrevia para o jornal Novaya Gazeta, o mais crítico ao governo Putin. Até a noite de ontem, o Kremlin não havia se pronunciado sobre o assassinato.
REUTERS E AP”
OESP / SUPLEMENTO LITERÁRIO
Ubiratan Brasil
Elogio à inteligência
“Era um sábado e os leitores do Estado passavam a receber um caderno cultural que logo se tornaria referência nacional. No dia 6 de outubro de 1956, começava a circular o Suplemento Literário, que acompanharia as edições de sábado do jornal e chegava com a finalidade de preencher a função de uma revista literária de porte nacional, mas atento às particularidades de sua feição paulista. Idealizado por Julio de Mesquita Filho e criado a partir de um projeto do professor Antonio Candido de Mello e Souza, o Suplemento Literário (cujo fac-símile está encartado dentro desta edição do Cultura) representou um marco no jornalismo brasileiro.
O momento era propício – o suplemento chegou para reforçar a fase de desenvolvimento cultural de São Paulo, iniciada com a criação da Universidade de São Paulo e seguida de uma efervescência musical (especialmente no trabalho desenvolvido por Mario de Andrade à frente do Departamento de Cultura), teatral (o fortalecimento do TBC), cinematográfica (o predomínio das produções da Vera Cruz) e artística (a criação dos Museus de Arte de São Paulo e de Arte Moderna) vivida na cidade.
Ao apresentar o primeiro número do Suplemento Literário, o crítico Décio de Almeida Prado, que o dirigiu até 1967, alertou seus leitores que a natureza do novo caderno seria literária e, portanto, artística. ‘Uma publicação como a nossa define-se menos, talvez, pelo que é do que pelo que deseja ser’, escreveu ele, na introdução. ‘Importa, assim, antes de mais nada, conhecer as idéias que estão atrás da realização.’
Assim, o que pautava o caderno era garantir um espaço regular para o debate de idéias e a divulgação de autores novos e consagrados (especialmente os escritores brasileiros), o que lhe garantiu um espaço privilegiado na divulgação de novas idéias em meio ao mundo fragmentado e veloz do jornalismo diário.
A idéia de criar um espaço diferenciado, aliás, surgiu dois anos antes, em 1954, quando a direção do Estado pediu a Antonio Candido que indicasse um grupo de colaboradores para uma série de artigos sobre a cidade para celebrar o 4º Centenário de São Paulo. No ano seguinte, o jornal convidou o professor para que editasse o suplemento literário que pretendia criar, compensando a falta de uma revista nacional com especificidades paulistas.
Candido (conforme diz em entrevista na pág. 2) idealizou o projeto mas se recusou a dirigi-lo, indicando Décio de Almeida Prado para a função. Um dos pontos de partida foi a Clima, revista editada por um grupo de jovens intelectuais paulistas que logo seriam incorporados à equipe de colaboradores do Suplemento, como Sábato Magaldi, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Alberto Soares de Almeida, além dos próprios Antonio Candido e Décio de Almeida Prado.
Outra preciosa fonte de alimentação cultural foi a Universidade de São Paulo. ‘A USP está ligada diretamente ao jornal O Estado de S. Paulo, porque o seu idealizador foi o dr. Julio de Mesquita Filho. Tudo isso indica que esse suplemento, sendo embora literário, vai refletir um pouco o tom da intelligentsia paulista, que é um tom de estudo, de ensaio, de reflexão’, observou Antonio Candido em conversa com a pesquisadora Marilene Weinhardt, autora de uma tese sobre o Suplemento Literário.
O caderno contava habitualmente com seis páginas – havia um plano de crescer para oito, mas isso só aconteceu em números especiais ou nas edições de final de ano, quando se oferecia um índice com todo o material publicado ao longo daquela temporada.
A diagramação, ao mesmo tempo austera e inovadora, foi concebida por Italo Bianchi, artista italiano formado em artes gráficas e plásticas, nome sugerido pela crítica Gilda de Mello e Souza. Ele buscou uma visualidade muito cuidada, que não contrastasse com a austeridade do jornal. Um dos pontos mais inovadores era privilegiar um espaço para reprodução de desenhos ou gravuras, o que tanto colaborava para um respiro visual na página como também divulgava o trabalho de artistas plásticos brasileiros. O crítico de artes visuais do jornal, Lourival Gomes Machado, era responsável pela escolha dos trabalhos.
Com isso, o suplemento, em grande parte, foi responsável pela maior divulgação de nomes já reconhecidos pela crítica, como Marcelo Grassmann, Flávio Shiró, Lívio Abramo, entre outros, além de possibilitar que certos nomes saíssem do anonimato, como o pintor e gravurista romântico espanhol Fernando Odriozola.
A primeira página do suplemento normalmente oferecia três artigos: duas colaborações livres e uma seção fixa, Letras Estrangeiras, um tipo de titulação que se repetia em outras páginas, também como espaço fixo. Assim, surgiam Literatura Brasileira, Crônica dos Estados, Teatro, Cinema, Música, Arte e Últimos Livros. ‘São partes fixas e regulares do Suplemento, encarregadas de dar-lhe espinha dorsal, enquanto a colaboração livre se destina a fornecer-lhe o contrapeso indispensável da variedade’, comentou Décio de Almeida Prado, no texto de apresentação publicado no primeiro número – vale lembrar que tal texto não saiu assinado.
Décio já exercia, desde 1946, a função de crítico teatral do Estado. Dedicou 22 anos de sua vida ao jornal, até 1968, percorrendo uma importante época do teatro brasileiro, fortalecido pela atuação do TBC, do Arena e do Oficina, e acompanhando desde a revolução de Vestido de Noiva, dirigida por Ziembinski, até a provocação de O Rei da Vela por José Celso Martinez Corrêa. Sua atuação à frente do Suplemento, no entender de Antonio Candido, foi decisiva para o sucesso e a acomodação de tantos nomes ilustres nas páginas do caderno.
A partir de suas determinações, por exemplo, o Suplemento abria espaço para a colaboração de autores consagrados, como Guimarães Rosa, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, como também de escritores que estavam então surgindo, como João Antônio, os poetas Geir Campos e Carlos Nejar, além do crítico Roberto Schwartz. Lançou nomes de importância fundamental na difusão da literatura estrangeira, como o crítico Anatol Rosenfeld e Leyla Perrone-Moisés, que publicou nas páginas do suplemento os primeiros textos sobre a vanguarda literária francesa (Robbe-Grillet, por exemplo).
No trabalho de pesquisa para sua tese de mestrado, Marilene Weinhardt observou, com particular interesse, a divulgação do surgimento da crônica publicada em livro, fato hoje corriqueiro, além da valorização do memorialismo, que sempre ocupou um espaço generoso. ‘Não havia uma linha editorial rígida, o Suplemento não impunha nenhuma linha de pensamento, todos os artigos eram assinados. Ao contrário, o Suplemento tinha uma estrutura altamente democrática’, disse ela, em uma entrevista ao Estado publicada em 1986.
O Suplemento Literário contrastava com outra publicação de igual importância da época, editada pelo Jornal do Brasil. O que diferenciava o caderno carioca era sua luta pela vanguarda poética, tornando-o um suplemento de combate. Em 1967, Décio de Almeida Prado deixou o comando do Suplemento Literário, e este passou para a responsabilidade de Nilo Scalzo, que variou o enfoque editorial. Mesmo assim, o noticiário cultural continuou privilegiado no Estado, até a criação do Caderno 2 e do Cultura, atuais divulgadores culturais e de lazer.”
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Equilíbrio entre tradição e inovação
“Autor do planejamento que resultou no Suplemento Literário, o crítico Antonio Candido foi um dos responsáveis pela criação de um espaço privilegiado para debate de idéias,surgimento de novos autores e revisão dos consagrados. Aos 88 anos, ele lembra que o SL, como era carinhosamente conhecido o suplemento, tinha uma posição de equilíbrio entre tradição e inovação.
‘Naquela época, São Paulo não tinha a densidade cultural do Rio’, comenta ele, em entrevista ao Estado. ‘O SL foi uma tentativa de fundir o tom de jornal com o de revista.’
Como foi seu trabalho de estruturação do Suplemento Literário, ou seja, a definição das áreas, seções e escolha dos principais colaboradores? A divisão se seções foi inspirada em Clima?
Não pensei em Clima, embora alguns dos encarregados de suas seções tenham vindo para o SL. A escolha das seções é diferente. A de Clima segue os setores habituais: Livros, Teatro, Cinema, Música, Artes Plásticas, Economia e Direito. A do SL compreende quase todos eles mas privilegia a literatura referida ao lugar de origem, tanto exterior quanto interior: Letras Alemãs, Francesas, Anglo-Americanas; Letras de Pernambuco, de Minas etc. Foi uma inovação que deu abrangência à matéria.
Já em sua diretriz estava claro que o Suplemento não se confundiria com o jornalismo diário. Qual era propriamente o seu objetivo?
A diretriz que norteou o plano foi a seguinte: São Paulo naquele tempo não tinha a densidade cultural do Rio, onde se concentrava o mais vivo da literatura e das artes. Não valeria a pena, portanto, pensar uma fórmula ‘de movimento’, como a que caracterizava, por exemplo, o famoso suplemento do Jornal do Brasil. A maior contribuição de São Paulo era a cultura universitária, mas não havia aqui revistas culturais importantes, nem na USP nem fora dela. Sendo assim, era recomendável tentar uma espécie de equilíbrio entre o movimento vivo da literatura e das artes e a tonalidade mais estável dos estudos universitários. O SL foi uma tentativa de associar as duas dimensões de maneira criativa e acessível, fundindo o tom de jornal com o tom de revista.
Que tipo de orientação recebiam os colaboradores quanto à escolha do assunto e à forma de escrever?
Os colaboradores eram livres para escrever sobre o que quisessem, da maneira que quisessem. Havia apenas o pedido de clareza e, na seção de resenhas, normas de apresentação da matéria e dos dados bibliográficos.
Não existe obra sem consciência da linguagem ou das linguagens que utilizará. Como o Suplemento evitou o rebaixamento do discurso que, de tempos em tempos, ameaça a integridade do pensamento?
Por isso mesmo a seleção dos colaboradores foi cuidadosa. Foram convidados sempre autores de boa qualidade, que mantiveram o nível característico do SL. Na escolha para as seções, por exemplo, consultei diversos amigos. Lembro que Egon Schaden, professor de Antropologia da USP, sugeriu para Letras Alemãs Anatol Rosenfeld, então praticamente desconhecido, que foi um dos principais colaboradores e ganhou fama por meio do SL. O escritor Antonio Olavo Pereira sugeriu alguns nomes, entre os quais Brito Broca para Letras Francesas e Willy Levin para Letras Anglo-Americanas. Para Letras de Minas, o historiador Francisco Iglesias indicou Afonso Ávila, e assim por diante. Como vê, a preparação foi cuidadosa e eu procurei reunir pontos de vista consensuais. Por isso erramos pouco, o nível se manteve e o SL acolheu colaboradores de várias partes do Brasil.
De que forma o Suplemento exibia, como o senhor lembrou em algumas oportunidades, a marca pessoal de Decio de Almeida Prado?
O SL nasceu de uma conversa que tive com o saudoso José Vieira de Carvalho Mesquita, que trabalhava no departamento financeiro e era um rapaz encantador. Eu censurei o jornal por não ter um suplemento literário, que me parecia indispensável devido à sua responsabilidade no terreno da cultura. Daí veio tempos depois o convite para planejá-lo e dirigi-lo, num exemplo de como os Mesquita souberam transformar a crítica bem intencionada em fator de aperfeiçoamento. Aceitei a primeira parte, não a segunda, e lembrei o nome de Décio de Almeida Prado, aceito calorosamente. Ele foi competentíssimo, criando uma atmosfera de dignidade com a sua abertura de espírito, a sua acuidade crítica, o seu raro equilíbrio e a força da sua personalidade harmoniosa. Na verdade, o êxito do SL foi devido a ele.
A diagramação era inovadora e austera ao mesmo tempo. Como foi a definição do projeto gráfico?
Eu estava meio perplexo com relação a este aspecto, alheio ao meu conhecimento, quando minha mulher, Gilda de Mello e Souza, lembrou o nome de Italo Bianchi, que assumiu a tarefa e foi responsável pela fórmula que a sua pergunta caracteriza bem e correspondia ao espírito do plano. Foi obra dele.
O senhor acredita que o Suplemento Literário continua sendo a vanguarda do jornalismo cultural brasileiro?
Não digo vanguarda, porque o SL tinha uma posição de equilíbrio entre tradição e inovação. Foi assim que acolheu os poetas do Concretismo, mas esteve sempre ligado ao que se pode chamar de linha média das concepções literárias. Esta fórmula compreensiva talvez tenha sido um dos motivos que fizeram dele o melhor suplemento do jornalismo brasileiro do seu tempo, graças, repito, à orientação firme de Décio de Almeida Prado. E é preciso dizer que também contribuíram os padrões de remuneração, elevados para o tempo, que permitiram interessar colaboradores de qualidade.”
Antonio Gonçalves Filho
Um caderno certo para a época certa
“Defendida na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, em 2002, a dissertação de mestrado (em Ciência da Comunicação) da jornalista Elizabeth de Souza Lorenzotti, sobre o Suplemento Literário, chega às livrarias no fim do ano, numa co-edição da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e da Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Com prefácio do professor Antonio Candido e projeto gráfico de Tide Hellmeister, o livro Suplemento Literário – Que Falta Ele Faz! acompanha a trajetória do caderno cultural, já estudado, nos anos 1980, pela pesquisadora Marilene Weinhardt, da mesma universidade.
Diferente da tese existente, que traz uma relação de todos os textos publicados no Suplemento entre 1956 e 1967, a nova dissertação procura estudar a publicação como um suplemento artístico, não jornalístico, inserido num jornal. Para tanto, ela pesquisou também a revista Clima, publicação do grupo de jovens críticos que se tornariam colaboradores do suplemento, entre eles Paulo Emílio Salles Gomes. Elizabeth Lorenzotti entrevistou o autor do projeto, Antonio Candido, o ex-editor Nilo Scalzo e alguns colaboradores. A seguir, ela conta como foi seu trabalho de pesquisa.
Você diz que seu interesse pela pesquisa foi despertado pela autonomia e independência de que gozava o Suplemento Literário. Comparando-o com os cadernos culturais de hoje, você considera que a publicação era ideologicamente autônoma?
O Suplemento Literário foi, sim, durante a gestão de Décio de Almeida Prado, autônomo e independente da Redação. Principalmente porque, como assinala o projeto de Antonio Candido, era uma publicação artística e literária. Para as questões de natureza jornalística relativas às artes e à cultura, o jornal já contava com uma página especial. O Suplemento Literário se dedicaria à crítica, à análise e reflexão, conforme texto final do projeto, entregue em 16 de julho de 1956 aos diretores de Redação, Julio de Mesquita Neto e Ruy Mesquita. Fisicamente já existia uma independência. O Suplemento funcionava em uma sala à parte da Redação. Acho interessante destacar que a remuneração, entre 1.000 e 2.000 cruzeiros por resenha, artigo, foto e ilustração, era dez vezes maior que a oferecida pelo mercado. O próprio Antonio Candido me disse que o que se pagava então era cerca de 100 a 150 cruzeiros por artigo. Candido foi convidado para fazer o Suplemento em 1955, algum tempo depois de ter feito uma crítica exatamente contra o excesso de publicidade da edição especial do Estadão relativa ao 4º Centenário da fundação de São Paulo. Ele mesmo havia participado escrevendo sobre literatura e sociologia em São Paulo. Mas, depois, disse a Juca Mesquita que achava a edição muito carregada de publicidade, dando a impressão mais de um empreendimento publicitário do que cultural. Como ele entendia que o Estadão era mais um empreendimento cultural que comercial, sugeriu: por que vocês não fazem um suplemento literário? Passado algum tempo foi procurado por Julio de Mesquita Neto, em 1955, na Faculdade de Direito, que o convidou à empreitada. Candido disse até que ficou muito sem graça, por ser convidado depois de ter feito a crítica. O Suplemento Literário era independente da indústria cultural, ainda incipiente, já que a sociedade de consumo começava a se formar no Brasil desenvolvimentista das décadas de 50 e 60. Ele analisava a produção cultural lançada no mercado, é claro, mas não dependia de sua publicidade para sobreviver. Praticamente não havia relações com o mercado, o que se pode medir pela quase ausente publicidade.
Como o professor Antonio Candido explica que intelectuais socialistas tenham sido escolhidos para dirigir um suplemento literário que contava ainda com colaboradores de esquerda, tendo o jornal outro perfil?
O professor diz que Julio de Mesquita Filho era um grande liberal. Certamente foi este o motivo da boa convivência com um intelectual socialista e o motivo do convite. As idéias eram diversas, mas o respeito mútuo. A competência e a correção de Candido, inquestionáveis. Numa entrevista que fiz com o professor, em 2 de abril de 2001, ele afirmou sobre Mesquita Filho: ‘Muito avesso à esquerda, no entanto convivia com pessoal de esquerda, e sempre respeitou.’ Segundo Candido, houve uma ocasião em que o doutor Julio conversou com o Décio sobre um colaborador comunista que talvez valesse a pena não colaborar. Décio disse: ‘Não sei se é comunista, mas o fato é que não transparece nos artigos, é um grande crítico. Mas se o senhor achar necessário que ele não colabore mais, eu aceito e nesse caso apresento minha demissão.’ Dr. Julio respondeu: ‘Não, Décio, está encerrado o assunto.’
No mesmo ano em que surgiu o Suplemento Literário do Estado, o Jornal do Brasil lançou uma publicação similar. Quais são as diferenças fundamentais entre os dois, nessa época, que você notou na sua pesquisa?
Não me detive na análise do suplemento do JB, que se colocava na luta pela teoria da vanguarda poética. O professor Antonio Candido diz que, em São Paulo e no Rio, havia suplementos diferentes, aquele era de outro tipo, de combate, de luta, ambos muito importantes.
O projeto original do Suplemento Literário lhe foi cedido pelo professor Antonio Candido. Quais eram as diretrizes que nortearam sua criação e quando começaram a ser esquecidas pelos sucessores de Décio de Almeida Prado, se é que foram?
O projeto foi delineado em três fases, entregues pelo professor à direção de Redação em abril, junho e o definitivo, em 16 de julho de 1956. Existiu sob a direção de Décio de Almeida Prado até o número 508, de17 de dezembro de 1966. Até o número 908 foi dirigido por Nilo Scalzo, quando se encerrou a publicação com este nome. Houve uma série de especiais do centenário do Estadão, depois voltou como Suplemento Cultural e Suplemento Cultura. Encerrou-se como Suplemento Cultural e continuou, até hoje, como a edição de domingo do Caderno 2. O plano inicial de um suplemento de Letras e Artes para o Estado, de 25 de abril de 1956, nas considerações preliminares, frisava: ‘O suplemento deve evitar dois extremos: o tom excessivamente jornalístico e o tom excessivamente erudito. O projeto foi cumprido estritamente enquanto durou o Suplemento. Não é à toa que muita gente guarda até hoje coleções inteiras do Suplemento e, como verifiquei na pesquisa, leitores dos mais fundos rincões do País. As matérias serviam de apoio para aulas, pesquisas e teses.
Você formulou duas hipóteses sobre o que provocou a morte do Suplemento. Foram os novos tempos, marcados pelo ritmo vertiginoso de produção, ou as divergências com a Redação que o mataram?
O professor Antonio Candido costuma afirmar que é possível que o Suplemento Literário tenha cumprido o seu ciclo. O Suplemento Literário morreu em razão da impossibilidade de continuar existindo como uma publicação de natureza artística, num jornal que começava a atravessar as vertiginosas mudanças da imprensa nas décadas de 60 e 70. Porque as transformações do jornalismo moderno e do perfil dos jornalistas não comportariam a figura de uma publicação dessa natureza, com a tradição da reflexão e da lentidão, dentro do turbilhão permanente de desintegração da modernidade. E também em função de divergências com a Redação, que o consideraria elitista e acadêmico. Na época, não se costumava publicar matérias assinadas nos jornais, e o Suplemento Literário assinava todos os seus artigos, apenas as resenhas não eram assinadas, o que poderia ser outra fonte de ciúmes. O professor Candido palpita que, além dos ressentimentos dos que não cursaram a universidade, havia uma questão estamental: o estamento jornalístico e o estamento universitário. Mas, como ele diz, é um palpite, não pode ser provado. Pesou muito, naturalmente, a falta de retorno publicitário e o fato de que, naqueles novos tempos, mais voltados ao consumo de massas e regidos por governos ditatoriais, a independência e autonomia da publicação não seriam mais possíveis. O Suplemento Literário existiu na época histórica certa, no local certo e sob as diretrizes de criadores certos. Trata-se de um modelo de publicação cultural não superado até hoje, uma experiência única em razão de suas peculiaridades e de sua fidelidade ao projeto original.”
ESTRÉIA / PIAUÍ
Karla Dunder
Para quem gosta de ler, Piauí
“Piauí. Este é o nome da nova revista que chega às bancas do País amanhã. Por que Piauí? Bem, ninguém sabe ao certo. Talvez porque fale com brasileiros que gostam de ler, pessoas que buscam um texto por inteiro, com começo meio e fim. Textos que façam sentido, que não tenham de se adequar à ditadura dos espaços. Textos que falem de pessoas para pessoas. Os assuntos tratados na revista sempre partem da realidade, do cotidiano, algo concreto. Enfim, uma revista voltada para a reportagem.
Editada em um formato maior do que as demais revistas mensais, no formato da New York Review of Books, justamente para acomodar os longos artigos, narrativas e reportagens. Os assuntos tratados por Piauí são atuais e instigam os leitores à reflexão. Uma revista para ser lida durante o mês, sem pressa, fruindo cada página. Não pense que essa é uma revista para chatos. Ao contrário, Piauí tem humor e sofisticação. Quadrinhos, contos, trechos de romances e poemas dividem as páginas com o jornalismo. E ainda quebra algumas regras: não tem editorial ou colunistas. Em resumo, este é o projeto do cineasta João Moreira Salles. ‘O que não falta na imprensa brasileira são opiniões. Há colunistas de turfe a macroeconomia, passando por numismática e psicologia, sem falar dos editoriais. Nada contra. Só não queremos ser uma opinião a mais’, afirma o jornalista Mario Sergio Conti.
Pela ousadia temática e gráfica, Piauí lembra revistas como Realidade e Senhor, dois títulos marcantes da década de 60. No entanto, como destacam os idealizadores, Piauí não quer e nem pretende ser uma reedição, assim como destacou João Moreira Salles: ‘Sem querer sofismar, a inspiração vem de todas essas revistas e de nenhuma. É claro que tanto a Senhor quanto a Realidade são marcos importantes do jornalismo brasileiro, revistas que trouxeram novidades, que inovaram. A Realidade, por causa de suas matérias longas e suas coberturas ambiciosas; a Senhor, pelo time extraordinário de colaboradores e o grande cuidado com a qualidade do texto. Nesse sentido, tanto uma quanto a outra serve de inspiração.’ No entanto, destaca Moreira Salles, é desnecessário e até mesmo impossível repetir uma fórmula dos anos 60.
‘A Piauí quer ser uma revista variada, que une humor a bom jornalismo, que aposta suas fichas em histórias bem contadas, sejam elas quentes ou não. A nossa identidade virá do fato de não sermos alvo fixo, ou seja, de mudarmos bastante de número a número. A ausência de editorias e de seções obrigatórias ajuda nisso,’ observa Moreira Salles. Piauí não é uma revista de opinião, nem de cultura, nas palavras do jornalista Mario Sérgio Conti. De acordo com ele, a proposta editorial está focada na história de pessoas, de lugares, de viagens. ‘Por relatos entenda-se reportagens, é claro, mas também diários, artigos com lembranças, histórias gráficas, trechos de livros inéditos.’
O projeto gráfico foi elaborado a partir do projeto editorial, tendo como base a idéia de uma revista para leitores. ‘A edição deve ser agradável de ler: limpa, arejada, boa de segurar, de folhear, de levar para a cama’, diz Conti. Neste primeiro número, o destaque é o texto, com poucas imagens ou desenhos nas páginas. As imagens, mesmo que discretas, são pontuais. A ilustração da capa é assinada pelo desenhista Angeli, Alvim assina uma curiosa história gráfica baseada no filme O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, e Marcel Gotlib apresenta o quadrinho Hipopótamo. O fotógrafo Orlando Brito assina o ensaio fotográfico Vultos da República, que captam os vultos sombrios dos bastidores do poder em Brasília. Imagens que mostram o desespero da política.
Alguns textos são curiosos, como Bom-dia, meu Nome É Sheila, de Vanessa Barbara. A repórter descreve como é o dia-a-dia de pessoas que trabalham com telemarketing. ‘O primeiro exercício de um curso de telemarketing é praticar o bom-dia. Há pelo menos quatro tipos de bom-dia: o tradicional, o belicoso, o sorridente e o de quem ganhou na loteria.’ Dá para imaginar? Além do treinamento e decoreba de scripts e roteiros. Danuza Leão faz o perfil do extravagante Guilherme Guimarães, o estilista das noivas. Guigui foi um sucesso na década de 60 e até hoje tem seu público fiel. Hoje vive em um apartamento no centro de São Paulo, cercado por bibelôs, tapetes de zebras e tantas outras coisas. GG não freqüenta restaurantes da moda, odeia futebol, entre outras peculiaridades.
Piauí tem horóscopo, mas como não tem nada em comum com outras publicações, sua previsão é inusitada. ‘Peixes: pense bem nos seus livros favoritos, nas músicas que lhe dão vontade de ser um cantor e compositor capazes de suspender a respiração alheia com dois acordes e quatro versos (…)’”
INTERNET
Ethevaldo Siqueira
Redes sem fio realizam o sonho da inclusão
“As redes sem fio de banda larga com tecnologias WiFi, WiMax e WiMesh podem desempenhar papel decisivo no processo de inclusão digital no Brasil. Com elas, o acesso aos serviços de banda larga pode deixar de ser um sonho distante e se transformar em realidade para todos os municípios, beneficiando as camadas mais carentes da população brasileira, que vivem nas 10 mil localidades com menos de 5 mil habitantes do País.
Essas redes já oferecem serviços de telefonia de voz sobre protocolo IP (VoIP) e acesso à internet em alta velocidade a populações de baixa renda por preços jamais sonhados. Em breve, levarão também televisão, com a tecnologia IP (IPTV), conforme mostramos nesta coluna (24-09-2006) num projeto bancado inteiramente pela iniciativa privada, de responsabilidade da Voice Global, no interior do Rio Grande do Norte.
A participação da iniciativa privada nesses projetos deve crescer muito mais, somando-se aos investimentos públicos destinados à inclusão digital, ainda insuficientes diante das necessidades brasileiras.
Na área pública, existem, no entanto, iniciativas pioneiras de prefeituras que merecem destaque por seus resultados e, em especial, por mostrar soluções concretas de baixo custo. São os casos de Sud Menucci, município paulista no noroeste do Estado, próximo a Andradina, e de Piraí, no Estado do Rio.
Outros projetos de inclusão digital patrocinados por grandes corporações utilizam também as tecnologias WiMax e WiMesh. É o caso da Intel, cujo presidente, Craig Barrett, veio ao Brasil no mês passado para inaugurar a cobertura da cidade de Parintins, às margens do rio Amazonas, com uma rede de alta velocidade. O projeto contou ainda com o patrocínio da Embratel. Existem em todo o País diversas redes WiMax-WiMesh em fase de implantação, apoiadas por Cisco, HP, Microsoft, IBM,Telefônica e outras empresas.
Um dos pontos essenciais que recomendam essas novas tecnologias é seu baixo custo. Na experiência do Rio Grande do Norte, a cobertura de cidades de até 20 mil habitantes com redes WiMax representou investimento da ordem de R$ 110 mil, cerca de US$ 50 mil. Além disso, os custos operacionais são bem menores do que o das tecnologias convencionais, permitindo oferecer acesso à internet de alta velocidade por apenas R$ 30 mensais. A telefonia VoIP reduz a maioria dos custos de chamadas de longa distância ao valor de uma chamada local.
As redes sem fio oferecem, assim, novas perspectivas para as populações de mais de 3 mil municípios do País que não dispõem de telefonia celular nem de acesso à internet.
REVOLUÇÃO WIRELESS
WiMax, WiFi e WiMesh estão na ordem do dia. Essas tecnologias de comunicação sem fio ganham importância ainda maior do que as de comunicação via cabo, por três razões: 1) menores custos de implantação de infra-estrutura; 2) mobilidade e flexibilidade de aplicações; e 3) cobertura máxima, com comunicação ubíqua.
Na opinião de especialistas, as tecnologias WiFi, WiMax e WiMesh não concorrem entre si, mas são complementares. As redes WiFi nasceram para curtas distâncias no interior de prédios ou corporações. As redes WiMax, por sua vez, foram concebidas para ampliar o alcance da WiFi, de poucas dezenas de metros para muitos quilômetros. As redes WiMesh, além de ampliar o alcance da WiFi, conferem maior segurança e estabilidade à comunicação, graças ao uso de roteadores e repetidores, interligados em malha, que permitem múltiplos saltos (multi-hop).
Na cidade mineira de Tiradentes, a Cisco implanta uma rede WiMesh de banda larga que começa a atender praticamente toda a população, sem nenhuma agressão ao patrimônio histórico. No projeto de Parintins, é utilizada uma combinação de WiMax e WiMesh. Nenhuma das três tecnologias, isoladamente, resolve todos os problemas. A solução ideal está, quase sempres, em sua combinação.
Quanto ao alcance, as redes sem fio podem ter quatro níveis de cobertura: 1)redes nacionais ou de grande área, em inglês, wireless wide area networks (W-WANs); 2)redes metropolitanas ou wireless metropolitan area networks (WMANs), de que são exemplos as redes WiMax e WiMesh; 3) redes locais sem fio ou wireless local area networks (WLANs), como as redes Wi-Fi; e 4) redes pessoais sem fio, de menor alcance, ou wireless personal area network (W-PANs), como Bluetooth e Ultrawide Band (UWB).
Para todas essas redes já existem padrões técnicos internacionais. Garantida essa interoperabilidade de redes, poderemos, em breve, usar o celular em qualquer lugar, acessar à internet em alta velocidade, ouvir rádio ou ver Televisão IP em qualquer computador ou palmtop. Eis aí mais um exemplo da convergência de tecnologias, serviços e conteúdos que revoluciona o mundo das comunicações.
A experiência mostra que os usuários mais jovens são os primeiros a aderir ao novo ambiente tecnológico, com uma facilidade que faz inveja a qualquer adulto. Essa facilidade de adesão é uma indicação clara de que as novas tecnologias podem tornar-se ferramentas do dia-a-dia até nas localidades mais remotas e humildes do País.”
TELEVISÃO
Keila Jimenez
De olho no lance de novo
“Jogador de futebol tem fama de falar, falar e sempre dizer a mesma coisa. Mas as mesas-redondas de boleiros merecem levar o mesmo título. São horas dedicadas a uma falácia acalorada quase sempre sobre os mesmos assuntos e com uma repetição impressionante. Não, nada contra o futebol arte em si. No entanto, submetida – por livre e espontânea vontade, que fique claro – a uma maratona de seis mesas redondas em menos de 36 horas, fica fácil notar como um gol, um lance único em que a bola toca o fundo de uma rede, pode se multiplicar como o milagre dos pães em canais pagos e abertos, dando origem a análises, discussões, comentários e brigas para todos os gostos.
Ok, o formato é clássico, a audiência permanece fiel, mas mesa-redonda é sim sinônimo de lugar-comum. Não que isso seja de todo ruim, a não ser para mim, é claro, que vi seis de uma só vez tentando entender por que os homens gostam tanto disso.
Despida do preconceito que assola esse tipo de atração entre os seres do sexo feminino (tudo bem, nem tanto assim), acompanhei, para uma análise comparativa, o Mesa Redonda, da Gazeta, o Bola na Rede, da RedeTV!, o Show do Esporte, da Band e o Terceiro Tempo, da Record. Todos do dia 24 de setembro. No dia 25, foi a vez do Bem Amigos, da Sportv e do Linha de Passe, da ESPN Brasil. Entre as descobertas, que seguem abaixo, finalmente entendi o que é um impedimento – de tanto que reprisaram um. No entanto, o mais importante é que descobri que as infinitas reprises de gols da rodada, lances polêmicos, bordões e nomes como ‘Corinthians’, ‘Palmeiras’ e ‘São Paulo’ funcionam como uma espécie de mantra ecoado intermitentemente na cabeça dos telespectadores. É justamente essa repetição que leva a audiência a um estado hipnótico, que transforma homens bons em zumbis imprestáveis por algumas horas. Só isso pode nos consolar, digo nós, as mulheres, em martírio supremo nas noites de domingo, ao ver o sexo oposto assistir a uma mesa-redonda após a outra, como um dependente químico do produto ali consumido. Acreditem, capítulos de novelas, acusados de repetir a mesma fórmula, parecem originalíssimos se comparados a debates futebolísticos.
Mesa Redonda
Um dos mais clássicos do gênero. Flávio Prado, apresentador do programa da Gazeta, até que tenta levar a sério as análises e discussões de seus convidados, mas não consegue. Em boa parte, por obra de um comentarista corintiano habituado a jogar álcool em qualquer discussão com potencial inflamável. É preciso avisar que falamos aqui de Chico Lang?
O assunto do dia foi um tal de Tite – guarde bem esse nome – até então técnico do Palmeiras, ele pediu demissão após um bate-boca com o dirigente do clube. Um bloco inteiro foi dedicado ao cidadão, com a repetição interminável de uma imagem dele sendo achincalhado pela torcida do Verdão no aeroporto. Um episódio que, aos olhos de uma grávida, como é o meu caso, foi de cortar o coração.
O fato, de importância relevante para os torcedores do Palmeiras, foi discutido pelos presentes. Até aí, tudo bem. O problema é que a discussão se estendeu por todo o programa, quando mais adiante o Palmeiras ganhou outro bloco inteiro da atração para mostrar sua vitória sobre o São Paulo justamente naquele momento de crise. Contado, um mesmo gol do Alviverde, foi reprisado 6 vezes. E olha que a partida teve 4 gols. Multiplique.
O restante da atração foi divido em: 10 minutos para o Corinthians, 5 para o Santos e 2 para Fluminse, Flamengo, Portuguesa, São Caetano, Vasco… Não me perguntem quem está na frente no Campeonato Brasileiro, mas sobre Tite… Sobre ele, sei tudo.
Show do Esporte
Roberto Avallone, lendário por aclamar em voz alta todas as pontuações de suas frases, comanda o debate da Band. Mais divertida, a atração abre com a história do Tite. Avisei para guardar o nome do técnico que foi saído do Palmeiras. Um bloco inteiro foi dedicado ao drama de Tite e outros dois (sim, dois!), à vitória do Palmeiras em cima do São Paulo.
E dá-lhe gols da rodada, jogadas polêmicas, reprises e mais reprises de um impedimento com direito a votação entre os presentes: o lance apitado foi ou não correto? Na seqüência, um apanhado de Palmeiras X São Paulo. Müller, comentarista do programa, e Avallone, garantem o tom filosófico (leia box ao lado), o que não é exclusividade deles.
Na seqüência, o programa dedica um pouquinho de tempo ao Corinthians, um pouco ao Santos, e outro pouco para determinada torcida do Galo, o Atlético Mineiro, que lota estádios apoiando o time na segunda divisão.
‘Antigamente as mesas-redondas eram mais iguais, agora não. Como também não é verdade que dou mais espaço para o Palmeiras no meu programa’, defende-se Avallone, palmeirense até para a percepção de quem não transpira futebol, como eu. ‘A repetição dos lances existe mesmo, mas não é culpa nossa. O público quer ver, a audiência sobe quando passamos os gols repetidas vezes, assim também como quando eu grito ‘bomba’ , para anunciar um furo de reportagem que achamos que é nosso.’
Bola na Rede!
Fernando Vanucci, apresentador da atração da Rede TV!, concorda com Avallone. ‘Reclamam que só falamos do Palmeiras, do São Paulo e do Corinthians, mas quando falamos de outros times a audiência cai’, justifica. ‘Não temos como fugir do que o público quer ver.’
Menos privilegiado por conta de seu horário de exibição – o Bola na Rede! vai ao ar às 18h, quando os principais jogos de domingo ainda não terminaram – o programa acaba não pecando pela repetição de gols e lances, mas só porque não pode. Aposta em links de estádios para tentar driblar as dificuldades do novo horário, fruto de uma imposição do Ministério da Justiça ao programa Pânico na TV!, que teve de ocupar o antigo horário da mesa redonda, indo ao ar mais tarde.
Mesmo assim, a maldição do tal Tite e a vitória do Palmeiras tomam boa parte do programa: um bloco inteirinho de discussão. Outro bloco vai só para o Corinthians. O que sobra fica para os outros times.
Terceiro Tempo
No debate da Record, o Corinthians é assumidamente o assunto principal, sempre. ‘O espaço maior sempre é para o Timão. Se estiver bom, ganha espaço, se estiver ruim, mais ainda’, fala Milton Neves, apresentador do programa. ‘Quando passo imagens do clássico Flamengo x Fluminense, a audiência fica em 2 pontos, se é Corinthians, sobe para 6, em que acha que vamos apostar?’continua. ‘Quanto aos gols, temos uma ordem da direção de exibir só duas vezes cada.’
Mas nem por isso Tite, ele, de novo, ficou de fora do Terceiro Tempo. Ganhou um bloco inteiro de discussão sobre seu caso, assim também como Palmeiras x São Paulo, partida cujos gols, em ordem e autorias, eu já havia decorado. Discussão sobre impedimento também tem, e é bem longa.
O Corinthians ganha seu glorioso espaço, mesmo sem nenhuma notícia. A torcida do Galo, aquela que apóia o time na segunda divisão, volta a ser destaque, só que na Record. Outros times como Goiás e Grêmio são citados também, para meu espanto.
Além de uma platéia, coisa que as outras mesas não têm, o Terceiro Tempo traz entre os seus integrantes duas mulheres, bonitas, é claro: Renata Fan e Renata Cordeiro. A última, por sinal, faz questão de travar uma briga com um dos comentaristas, defendendo os times do Rio. Tudo parte do picadeiro manjado, orquestrado por Milton Neves e seu sotaque mineiro.
Abraços e merchandisings
Eles merecem um capítulo à parte. São tantos e tão engraçados, que valem o show. Abraços é o que não faltam no Mesa Redonda, de Flávio Prado. Todos os convidados mandam os seus, para irmão, vizinho, padeiro, açougueiro… O apresentador não esquece de uma loja maçônica de um amigo.
Milton Neves, no Terceiro Tempo, dedica bom tempo a agradecer a um tal Israel, que o convidou para a festa de casamento do filho, onde 70% do PIB nacional estava presente, segundo o apresentador.
Já os merchandisings, maior fonte de renda desses programas, são hilários. Sem medo da infâmia, Vanucci não perde o texto sobre a crise de um determinado time e emenda: ‘para o torcedor não ter mais dor de estômago com isso, tome gelmax…’
Flávio Prado , ao comentar lance em que o goleiro deixou a bola escapar, aproveita: ‘Se o goleiro usasse os sapatos Di Pollini, não pisaria assim na bola’.
O rei deles, Milton Neves – que ganhou até o apelido de Merchan Neves por conta disso – é o mais folclórico. ‘Essa sim é a Copa do Mundo da Cerveja’, fala, sobre a Octoberfest.
‘Vamos todos nós jantar no Lellis agora’, encerra Vanucci, com os letreiros do Bola na Rede! já subindo, mas a tempo de não perder o jabá.
TV paga
Repetição não é a palavra de ordem das mesas-redondas da TV paga, pelo menos não do Bem Amigos, da Sportv, e do Linha de Passe, da ESPN Brasil. Talvez porque os dois vão ao ar na segunda-feira, um dia após a repetição à exaustão dos concorrentes da TV aberta, ou porque o público é diferenciado. O fato é que tanto Galvão Bueno, da Sportv, como José Trajano e Juca Kfouri, da ESPN, não se prolongam com reprises de gols da rodada. Fazem análises, é fato, votação entre os convidados sobre determinado lance, mas abrem espaço para times do todo o País e até para outros esportes.
Foi no Bem Amigos que descobri o fiasco do Brasil na Copa Davis de tênis. Lá também falaram sobre a situação do basquete nacional, com a presença da jogadora Janeth, entre os convidados. Por sinal, o programa é mais frufru que o concorrente. Traz sempre um músico entre os participantes, e investe nas desavenças entre Galvão e Arnaldo César Coelho na hora de fazer piada.
Mais sério, o Linha de Passe dá verdadeiras aulas de futebol com Juca Kfouri. Por alguns minutos cheguei a esquecer que se tratavam de duas mesas-redondas, como outras tantas que vi , mas ao dar de cara com a imagem de Tite na tela, ele mesmo, o defenestrado, e a goleada do Palmeiras, voltei à dura realidade hipnótica desses programas: a repetição.
Pérolas do blábláblá do futebol
Galvão Bueno
Apresentador do ‘Bem Amigos’
‘O Guga não é mais o Guga’, sobre o desempenho do tenista da Copa Davis.
Janeth
Cestinha
‘A regra é clara, mas o juiz é confuso!’, falando sobre uma partida no ‘Bem Amigos’.
José Trajano
Integrante do ‘Linha da Passe’
‘O púbis não entrava em campo antigamente’ sobre jogador com dores no local.
Müller
Comentarista do ‘Show do Esporte’
‘O jogador foi muito precipitado, portanto, se precipitou!’
Roberto Avallone
Apresentador do ‘Show do Esporte’
‘Vou enchurissar’, criando um novo verbo.
Tite
ex-técnico do Palmeiras
‘Velocidade é um aspecto fundamental de modernidade, quando se chega na frente e a velocidade com que tu retornas, e quando tu retornas, a velocidade que tu chegas na frente…’ Tentativa do técnico em explicar algo indecifrável.
Milton Neves
Apresentador do ‘Terceiro Tempo’
‘Tiradentes foi o primeiro torcedor do Galo. Se não fossem os mineiros, nós estaríamos pagando impostos para Portugal até hoje’, agradecendo uma medalha que recebeu lá.
Fábio
Goleiro do Cruzeiro
‘Hoje, graças a Deus, a gente conseguiu conseguir o nosso objetivo, os 3 pontos!’, sobre o resultado de um jogo no ‘Terceiro Tempo’.”
Leila Reis
Troca de papéis
“Será ‘que a grama do vizinho é mais verde?’, pergunta o programa Troca de Família na abertura. Uma espécie de reality show com formato comprado da americana Fox, o primeiro episódio do Troca de Família rendeu audiências respeitáveis à Record: 9 e 10 pontos na Grande São Paulo.
A idéia de trocar as esposas/mães de famílias de perfis completamente diferentes é consagrada. Tanto que aqui no Brasil, os assinantes de canais pagos já puderam ver versões na Fox (Trading Spouses) e na People & Arts (Wife Swap) que, além de exibir episódios gringos, já produziram alguns poucos com famílias daqui.
Troca de Família funciona assim: durante uma semana, duas mulheres trocam de papéis: uma assume o modo de vida da outra. No primeiro episódio – exibido em duas partes, às terças-feiras (22h15) -, a troca ocorreu entre as famílias Bello e Querubin. As protagonistas: Rozânia Bello, uma advogada vaidosa de São Bernardo do Campo, classe média alta, estilo perua assumido, mulher de médico e mãe de três adolescentes. E Elaine, uma trapezista que vive com o marido (o palhaço Pingolé) e a filha de 15 anos em um trailer que acompanha o circo onde a família trabalha, à época da gravação, estacionado na Marginal do Tietê, na Capital.
O que atrai a atenção do público é o contraste. Logo de cara prenuncia-se o confronto entre o simples e o fútil. Elaine se encanta com cada aspecto da nova vida: a educação do marido, a beleza da moradia, o conforto e a boa vida: ‘Eu não vou agüentar ficar sem fazer nada’. Como diz o ditado que com coisa boa não há quem não se acostume, a trapezista não demora a se ‘adaptar’ e logo está pedindo um suco de laranja à empregada enquanto se espreguiça no sofá.
No outro lado da cidade, Rozânia enfrenta a perplexidade de Pingolé com sua falta de habilidade na cozinha e nos afazeres domésticos. Acostumado ao comportamento quase servil da esposa e com seu código conservador, o marido da trapezista reclama do jeito de ser da perua, especialmente da falta de empenho com a casa e a comida. ‘Quando ela disse que ia cozinhar, não pensei que fosse lasanha congelada!’
Rozânia, no entanto, joga truco melhor do que ele, dirige o carro velho com entusiasmo e no fim enfrenta o picadeiro como palhaça. E ganha a simpatia de Pingolé e do povo do circo. Reclama da falta de um espelho de ‘corpo inteiro’ e (talvez por sugestão da produção) leva a filha do casal para um desnecessário passeio nas lojas da Rua Oscar Freire, onde acha ‘bom’ o preço de uma calça de R$ 750,00, e para comer ‘peixe cru’ em um restaurante japonês.
Lá no ABC, Elaine também é levada a um japonês e à casa de praia da família. Não fica só no deslumbramento. Consegue colocar certa ordem na casa e nos filhos. Estabelece punição para o filho que costuma bater no menor (flexões de braço como no exército) e consegue tirar os meninos da frente do computador para mandá-los para a cama mais cedo.
No fim, trocam experiências. As famílias conseguem ver qualidades nas substitutas e valorizar as titulares das quais se distanciaram. Rozânia chega à conclusão que dá para se levar uma vida com mais simplicidade (e menos dinheiro) e o palhaço Pingolé, que uma mulher não precisa ser burro de carga.
Assim como SuperNany, importado pelo SBT e que chegou a render 15 pontos no Ibope, esse tipo de programa pega o telespectador não pelos mesmos motivos que o leva a acompanhar a doce vagabundagem de big brothers. Por mais que em alguns aspectos haja uma forçada de barra, ao entrar no cotidiano de personagens reais, o programa diverte porque leva o público a se reconhecer em algumas situações. Mais que isto, a constatar que se colocar no lugar do outro pode realmente abrir horizontes.”
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