Falando aos repórteres ontem [quarta, 12/11], em Doha, a presidente Dilma Rousseff tentou minimizar, como se diz no jargão político, os efeitos do epistolar pedido de demissão de Marta Suplicy do Ministério da Cultura. “Ela não fez nada de errado”, disse com ar de tranquilidade. “Não teve atitude incorreta. Apenas externou a opinião dela.” A frieza pétrea de Dilma Rousseff era previsível, por certo. Acima disso, era indispensável. Chefe de um governo cujos ministros, às muitas dezenas, são quase todos demissionários, alguns reclamando abertamente da falta de sensibilidade da governante, ela precisa mostrar que segue imperturbável. Só lhe resta falar como se tudo não passasse de um rodízio de rotina.
Acontece que a “opinião externada” por Marta Suplicy foi um tranco impiedoso, nada rotineiro. De modo nem tão elegante assim, a ex-ministra da Cultura afirmou que faltam ao governo credibilidade econômica e uma agenda de estabilidade e crescimento. Crítica mais tucana, impossível. A provocação não poderia ter sido mais sádica. A carta de Marta, datada de terça passada [11], merece ser relida pelo menos neste trecho em que a acusação contra a gestão de Dilma, ainda que mal disfarçada por uma rala névoa diplomática, é frontal: “Todos nós, brasileiros, desejamos, neste momento, que a senhora seja iluminada ao escolher sua nova equipe de trabalho, a começar por uma equipe econômica independente, experiente e comprovada, que resgate a confiança e credibilidade ao seu governo e que, acima de tudo, esteja comprometida com uma nova agenda de estabilidade e crescimento para o nosso país.”
Convenhamos: se todos os ministros, demissionários ou não, começarem a “externar opiniões” nesse diapasão, não há governo que pare de pé. Se uma presidente da República não tem dado conta de assegurar credibilidade, estabilidade e crescimento, o que mais poderá assegurar? Lembremos que dias antes da carta de Marta o ministro Gilberto Carvalho foi explícito em declarar que a chefe tem ido mal em matéria de dialogar com a sociedade. Definitivamente, não são pronunciamentos amenos, mas fissuras traumáticas que cindem o PT e o governo. Dilma toca o barco, sabe disso muito bem que não há nada de corriqueiro na Esplanada dos Ministérios. Sob o império de sua caneta o PT se estilhaça um pouco mais.
PT vs. PT
O estilhaçamento é particularmente doloroso porque segue a trilha de um desamor. Embora a política não deva ser lida como narrativa sentimental – e ao procurar separar as duas esferas a presidente adota uma postura mais adulta e menos deletéria do que outros à sua volta –. as falas mais agressivas que brotam do coração do seu governo contra o próprio coração do governo dão sinais de que uma guerra está em curso. Seus combatentes até que se esforçam para falar a língua da política, mas fracassam. Sua substância não é apenas política. Atabalhoadamente, a guerra descamba para o discurso amoroso, quer dizer, desamoroso, que mal esconde o desejo que ficou, por assim dizer, em aberto. Se alguém duvida, preste atenção na linguagem das batalhas.
“A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem contra o outro”, escreve Roland Barthes em Fragmento de um Discurso Amoroso. “É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo.” No discurso desamoroso, contudo, quem orienta as palavras não é bem o desejo, mas o avesso do desejo, ou sua carcaça, que irrompe para renegar (aos gritos) aquele que teria sido o ser amado. Em lugar de envolver o outro como se tivesse dedos, o discurso, agora, travestido de uma trôpega razão política, tenta feri-lo e amaldiçoá-lo.
Durante a campanha eleitoral, sanguinária e sanguinolenta, vimos aflorar o ódio entre polos radicalizados de candidaturas opostas. Agora, vai se anunciando um ódio que consome (e já estava consumindo) um dos polos da disputa eleitoral, o polo que saiu vitorioso das urnas. As falas são políticas, mas as entrelinhas são apaixonadas e – vale insistir – desamorosas.
“O amor é a coisa mais triste quando se desfaz.” E feia também. Contam que Marta Suplicy teria sido porta-voz do clamor subterrâneo petista que queria Lula no lugar de Dilma como candidato à Presidência em 2014. O movimento “volta, Lula” já era, ele mesmo, um sintoma da saudade de um idílio que se despedaçava, pois era uma investida do PT contra o próprio PT. Nesse sentido, já era um prenúncio do discurso desamoroso que agora se instalou de vez, com provas de ingratidão, setas de ciúme e fisgadas de abandono.
Cristais trincados
Há ainda um quê de crise familiar – igualmente amorosa – na guerra sentimental que se adensa no Palácio do Planalto. Parece uma família que se desmantela, com irmãos, cônjuges e cunhados, além de sogros e sogras, que se perdem uns dos outros para sempre, deixando seu legado para ninguém. Mais dia, menos dia, talvez se veja afixada por ali uma faixa com os dizeres: “Família vende tudo”. Sem exagero.
Não é de hoje que a metáfora da família tem servido para descrever os descaminhos do PT. É conhecida a tirada de um senador petista que, quando indagado sobre a razão de ter ficado no partido mesmo depois de tantas provas de corrupção, diz que não se abandona a família só porque alguns de seus integrantes se portaram mal. Alguém poderia obstar: mas o partido a gente escolhe e a família, não. O partido é produto da vontade. Dele gente sai. Os laços internos do partido são políticos, os laços da família são de sangue – e são amorosos. Falar do partido como se ele fosse uma família é despolitizá-lo e, outra vez, confundir as esferas (ou mesmo as bolas).
Mas é o que é. É o que tem sido. Entre emoções intensas, cristais trincados e um fundo musical que vai do samba-canção à Tropicália, um discurso confuso e desamoroso, voluntário ou inconsciente, faz sangrar em público um sonho que não mais se reconhece.
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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP