Na manhã de 15 de junho de 2005, uma quarta-feira, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva leu o boletim diário com o resumo comentado das notícias, produzido pelo assessor da Secretaria de Comunicação Bernardo Kucinski. As manchetes dos jornais daquele dia estampavam o demolidor depoimento de Roberto Jefferson ao Conselho de Ética da Câmara. Durante oito horas, ele dissecara o esquema do mensalão, assumira delitos, incriminara a cúpula do PT e dos partidos aliados, além do principal ministro do governo, o chefe da Casa Civil, José Dirceu. “Só resta ao presidente aprofundar a linha de conduta de ‘não deixar pedra sobre pedra’ no combate à corrupção e, se preciso, ‘cortar na própria carne’”, recomendava o relatório escrito para o presidente. A reação do governo deveria, ainda, segundo o texto, dar ênfase na defesa da reforma política.
Nove anos se passaram entre a denúncia do mensalão e o atual escândalo dos desvios da Petrobras. A corrupção está exposta como nunca antes na História, com prisões de executivos das maiores empresas do país. Na noite de 25 [26] de outubro, Dilma Rousseff, que acabara de ser reeleita para novo mandato, prometeu ao discursar que as investigações dos atuais escândalos não deixariam “pedra sobre pedra”: “Terei o compromisso rigoroso com o combate à corrupção, propondo mudanças na legislação atual para acabar com a impunidade”. E defendeu a reforma política como prioridade. O ex-assessor de Lula nunca trabalhou para o governo Dilma.
Jornalista, escritor e militante do PT, Bernardo Kucinski começou a escrever para Lula em 1993, nas “caravanas da cidadania”, viagens pelo interior do Brasil. Prosseguiu durante as eleições de 1998. Em 2002, porém, Duda Mendonça, o marqueteiro da vitoriosa campanha que criou o “Lulinha paz e amor”, dispensou as “cartas ácidas” de Kucinski, chamadas assim pelo tom mal-humorado que influenciava as relações do então candidato com a imprensa. Foram rebatizadas para “cartas críticas”, mas, segundo o autor, não influíram na ocasião.
Chato necessário
Com a vitória de Lula, Kucinski foi contratado pelo ministro Luiz Gushiken, da Secom. Redigiu diariamente as cartas críticas até 30 de junho de 2006, pouco antes do final do primeiro mandato de Lula. Uma seleção desses textos estará disponível ao público, no início de 2015, no livro Cartas a Lula – O jornal particular do presidente e sua influência no governo do Brasil, publicado pela Edições de Janeiro.
Em 458 páginas, o leitor poderá ter um panorama de temas abordados pela imprensa mandato de Lula e de alguns conflitos internos, segundo a visão petista: o Fome Zero, o caso Banestado, as CPIs dos Bingos e dos Correios, que investigaram o mensalão; a transposição do Rio São Francisco, a crise da febre aftosa e, claro, a economia.
Além de Lula, um seleto grupo recebia as cartas, que nem sempre agradavam – especialmente pela oposição à política econômica do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Em 27 de abril de 2004, o Congresso discutia o valor do salário mínimo, que Lula prometera dobrar em quatro anos. A equipe econômica segurava o reajuste para manter as metas fiscais e o equilíbrio da Previdência. Já Kucinski argumentava que a Lei de Responsabilidade Fiscal era uma “camisa de força irreal” e defendia um mínimo de R$ 300. O valor aprovado foi R$ 260. Palocci venceu.
– Eu assumia uma postura de militante que ia além da de assessor do presidente. Externava a opinião não só minha, mas de muitos, inclusive vários ministros, de que o palocismo estava enterrando o governo Lula – relata Kucinski.
Um outro assunto que ocupou a publicação foi o relacionamento do presidente com a mídia. Para o autor, o sistema de comunicação do governo era inadequado. Ele criticava a ausência de entrevistas formais e defendia contatos permanentes com os jornalistas. Lula, porém, só concedeu a primeira entrevista coletiva em 9 de abril de 2005, mais de dois anos depois da posse. As críticas da época se estendem ao governo Dilma:
– Não tenho acompanhado a política, exceto como cidadão comum, mesmo assim bastante enfadado. O que havia no governo Lula era falta de percepção de que a Presidência, como instituição, deve ao país uma postura de comunicação pública de caráter até mesmo ritualístico. Com Dilma, não sendo ela uma comunicadora nata, tudo isso se torna ainda mais necessário – analisa o jornalista.
Na introdução do livro, Kucinski afirma que fez várias propostas – frustradas – para a estrutura de comunicação do governo, mesmo fora de suas atribuições. A Radiobrás, depois transformada em Empresa Brasileira de Comunicação, falhava, na opinião do jornalista, como ele explica no texto de abertura:
“A Radiobrás, na sua ânsia de se libertar da pecha de chapa-branca, não criou as grandes narrativas do governo Lula, como mereciam o projeto de transposição do Rio São Francisco e o envio das Forças Armadas ao Haiti.”
Ele confessa que a frustração o levou a deixar o governo.
Pela função de contrariar o governo, o jornalista, não raras vezes, era chamado de “o chato do Kucinski”. Ele aceita o adjetivo.
– Todo governo precisa não só de um, mas de vários chatos. A tendência é de um governante ver-se rodeado de puxa-sacos. Daí a importância dos chatos.
E se escrevesse para a presidente Dilma, o que recomendaria?
– Contratar um chato para mandar a ela toda manhã uma carta crítica.
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Lydia Medeiros, do Globo