Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Luz negra

Aos 60 anos, a professora Vera Eunice de Jesus Lima está descobrindo, “estupefata”, como ela gosta de dizer, a “força e a poesia” de sua mãe, Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Até então, Vera se via apenas como personagem de uma fábula de miséria e glória, que começa em 1958, na favela do Canindé, nos arredores do estádio da Portuguesa, em São Paulo, e termina silenciosa em um sítio em Parelheiros, zona sul da cidade.

“Não tinha dimensão da importância dela. Só agora, com este rebuliço, é que fui reler tudo o que ela escreveu. É como se eu estivesse conhecendo a minha mãe agora”, diz, sentada na sala do apartamento de dois quartos, em condomínio de Interlagos.

O “rebuliço” tem razão de ser: uma série de eventos marcam o centenário da escritora negra, favelada, semianalfabeta, nome acidental e revolucionário da literatura brasileira, que desapareceu das estantes das livrarias.

Carolina Maria de Jesus será a homenageada da edição deste ano da Flink Sampa, festival de literatura negra que acontece neste sábado (22/11) e domingo (23), no Memorial da América Latina. Haverá o relançamento de dois de seus livros: Quarto de Despejo (Ática, 200 págs., R$ 34,90) e Diário de Bitita (Sesi-SP, 216 págs., preço a definir). Ela é também a homenageada da Balada Literária, com eventos que vão até domingo em SP. E no Rio, foi a estrela da Flupp (Festa Literária Internacional das Periferias), na semana passada [retrasada].

Na segunda (17/11), foi lançado, na Câmara Municipal de SP, o livro Onde Estás Felicidade?, com dois contos inéditos e apoio do MinC. “Para o grande público, é um resgate de Carolina”, diz Uelinton Farias Alves, professor de literatura brasileira da Universidade Zumbi dos Palmares e curador da Flink. “Hoje há muitos autores de periferia, como o Paulo Lins. Ela é a precursora. Abriu um precedente na literatura.”

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Carolina de Jesus viveu do caos ao caos

Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, em Sacramento, interior de Minas, numa família de negros analfabetos. Chegou a ser presa, acusada de roubar 100 mil-réis de um padre. No raiar de 1947, aportou na Estação da Luz, em São Paulo, onde iniciaria uma caminhada de percalços até se tornar escritora best-seller.

Logo que se instalou na capital paulista conseguiu emprego na casa do médico Euryclides de Jesus Zerbini, precursor da cirurgia do coração no Brasil, que a deixava usufruir de sua biblioteca nos dias de folga. Com apenas dois anos de estudo, adorava ler.

Metida e indisciplinada, como a definem os que conviveram com ela, pulou de emprego em emprego até engravidar de João José, em 1948. Teria mais dois filhos: em 1949, nasceu José Carlos, e, em 1953, Vera Eunice.

Grávida e sem trabalho, foi viver na nascente favela do Canindé, nos arredores do recém-construído estádio da Portuguesa. Levantou um barraco de um cômodo e sobrevivia catando e vendendo papel.

Em 1958, o destino lhe sorriu, com todos os dentes. Apareceu na favela o jornalista Audálio Dantas, da extinta Folha da Noite. Estava ali para escrever uma reportagem. “Olhava uns marmanjos brincando no playground quando apareceu uma mulher esculachando, dizendo que se eles não caíssem fora, ia botá-los no livro”, lembra Dantas. “Fui perguntar qual livro. Como era esperta, logo viu uma oportunidade.”

Carolina de Jesus arrastou o repórter para o seu barraco, onde lhe mostrou uma pilha de cadernos. Entre eles, um diário no qual anotava acontecimentos do dia-a-dia na favela, iniciado em 15/7/1955. “Me chamou a atenção. O texto tinha uma forma de narrar próxima da poesia”, conta Dantas. “Voltei para a redação e publicamos trechos.”

A edição da Folha da Noite de 9 de maio de 1958 repercutiu em vários outros jornais e revistas do país. Dois anos depois, a editora Francisco Alves publicou o diário no livro Quarto de Despejo. A primeira edição saiu com 30 mil exemplares. Segundo a pesquisadora Raffaella Fernandez, da Unicamp, a obra foi reimpressa sete vezes em 1960. No total, vendeu 80 mil exemplares. Quarto de Despejo foi traduzido para 14 línguas em 20 países. “No lançamento em São Paulo, até o Pelé foi”, conta Dantas.

Carolina de Jesus virou celebridade e se mudou para um sobrado de três andares no bairro de Santana. Lançou mais três livros: Casa de Alvenaria, Pedaços de Fome e Provérbios. Postumamente, em 1982, foi lançado na França, Diário de Bitita, que chegou ao Brasil pela Nova Fronteira, em 1986.

Brigas

“Carolina não conseguiu viver em Santana. Brigou com todos os vizinhos, que a receberam mal”, lembra Dantas. “Não era uma pessoa comum. Nunca teve alma de pobre favelada, queria brilhar.”

De Santana, a escritora migrou para um sítio em Parelheiros, onde começou a definhar no mundo literário até sumir.

“Passada a novidade, Carolina foi rejeitada por todos. Pela direita, por expor a miséria. Pela esquerda, porque não queria saber de luta social”, diz Joel Rufino, autor de Carolina de Jesus, Uma Escritora Improvável (Garamond).

Desse tempo, a filha Vera Eunice de Jesus Lima guarda as piores memórias: “Passamos outro tipo de fome, pois conhecemos a fartura. Tinha 13 anos quando minha mãe voltou a catar lixo.”

Nunca parou de escrever, até a morte, em 1977, em decorrência de crise de asma.

“Quando conseguia dinheiro, ela voltava para casa feliz, com o pão, e escrevia noite adentro. Dizia que a noite lhe trazia as ideias”, diz a filha (K.M.).

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Karla Monteiro, da Folha de S.Paulo