Antonio Delfim Netto foi superministro, capaz de mandar em tudo, no período mais negro da ditadura militar, entre 1967 e 1974. Enquanto o “sistema de segurança” prendia, torturava e matava sem piedade, o todo poderoso ministro da economia fazia e desfazia os negócios públicos. O “milagre econômico” rendia taxas de incremento da riqueza nacional em torno dos 10% ao ano ao mesmo tempo em que o regime tirava sangue dos seus adversários e impunha um reinado de sombras e de medo. O cinismo era o elo entre as duas dimensões da ditadura. Delfim expressou como ninguém essa capacidade de convivência entre o horror e a opulência.
Mas não dá para ficar com ódio de um homem que consegue conviver com a brutalidade política sem deixar de ser um acumulador de conhecimento, diz o também economista Samuel Pessôa, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas e próximo ao PSDB. Ele garante que Delfim é uma pessoa “que não parou de estudar. Estuda até hoje, o tempo todo”.
Outros personagens dão testemunho do valor do acadêmico e intelectual em longa matéria em um dos últimos números da revista piauí (nº 96). O grande legado do superministro dos generais Costa e Silva, Médici e Figueiredo não é a política econômica que concebeu e executou nos seus anos de figura proeminente do governo, mas sua biblioteca, de 250 mil volumes. É “a maior biblioteca particular do país”, duas vezes maior do que o acervo da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, para a qual os volumes foram doados.
Inclui livros, mas também compêndios de artigos sobre economia selecionados e anotados por Delfim, que mandava encadernar esses trabalhos a cada mês. Além de livros obtidos em sebos espalhados por vários países, Delfim teve acesso a cópias de publicações do século XIX xerocopiadas da seção de livros raros da biblioteca de Cambridge, na Inglaterra. Quem conseguiu essas preciosidades foi o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, o principal assessor econômico de Marina Silva, quando candidata a presidente da república.
Para atender o amigo, Giannetti, ex-aluno e professor em Cambridge, desrespeitou a norma da velha e influente universidade proibindo fotocopiar obras raras, aproveitando-se de haver pouco controle na seção. Um inglês jamais chegaria a tanto, mas a Inglaterra foi contumaz na pirataria da cultura alheia. Giannetti foi o instrumento a serviço do enriquecimento da biblioteca de Delfim, agora acessível aos frequentadores da USP.
Detalhe omitido
Ele narra o delito sem sentimento de culpa. Teve até uma compensação: Delfim interferiu pessoalmente para que a remessa de livros do próprio Giannetti, quando de regresso ao Brasil, escapasse ao controle indevido da alfândega no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Gestos generosos e espontâneos como esse são possíveis porque Delfim continua a dispor do seu quinhão de poder mesmo quase 30 anos depois do fim do regime de exceção ao qual serviu sem limites como o maior de todos os tecnocratas, aos quais nunca causou problemas por qualquer escrúpulo da consciência.
Pouco afeitos aos temas econômicos e incapazes de dominá-los, como uma das lacunas do currículo nas suas escolas de formação, os militares delegaram a economistas que escolheram o poder decisório na matéria. O primeiro dos superministros foi o ex-seminarista Roberto Campos. Ao contrário de Delfim, Bob Fields (como era tratado pela esquerda por seu internacionalismo, interpretado como entreguismo pró-EUA) teve um gesto de autonomia: se recusou a assinar o primeiro (que deveria ser o único) Ato Institucional, que cassou os ex-presidentes Juscelino Kubitscheck e João Goulart, aos quais servira na administração pública. Se tivesse que assinar, entregaria seu cargo. Mas foi desobrigado desse ato e permaneceu como o dono da economia, título partilhado com o também ministro Octávio Gouvêa de Bulhões.
Essa dupla face de Delfim Netto resulta em ambiguidade por parte da maioria dos que se manifestam a respeito dele. Os cartunistas, por exemplo, parecem procurar preservá-lo, mesmo quando o criticam ou desdenham. É fácil caricaturar Delfim, por sua condição física de gordo e simbólica de ogre. Ainda assim, os humoristas mantêm uma tinta de verniz civilizado quando traçam sua figura. Daí ele colecionar em molduras 20 caricaturas, distribuídas pelo seu escritório, como se fossem imitações de animais empalhados, que caçou ao longo da sua vida pública, cujo poder, aos 86 anos, não desapareceu (pelo contrário, se recompôs) sob governos do PT, partido que antes o abominava (e vice-versa).
Os Pessôas, Belluzzos e Giannettis surgem na narrativa de piauí com seus depoimentos favoráveis e a própria revista arremata o texto com uma visão positiva do biografado, sem fazer referência a um episódio polêmico, ainda hoje mal esclarecido: o relatório do adido militar da embaixada do Brasil em Paris, coronel Raimundo Saraiva, apontando o embaixador Delfim e dois dos “delfim boys” como beneficiários de suborno na contratação de empréstimo para a construção da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará.
O relatório se baseia em acusações verbais, sem provas materiais sobre a possível transação. Revelado na época, foi um dos temas da CPI da dívida externa, que não chegou a conclusões convincentes. Ao invés de investigar em maior profundidade para elucidar o caso, porém, o governo arquivou o relatório e encerrou o assunto, que, de tão sepultado, não renasceu na matéria de piauí.
A revista, que não deu os nomes dos autores dos 20 cartuns emparedados por Delfim, também omitiu outro detalhe: Delfim nunca se interessou por incluir na sua coleção uma charge que o argentino Luis Trimano fez para o semanário Opinião. Nela, não há dubiedade, hesitação ou meios tons: Trimano desenhou um Delfim malfazejo e cínico, a quem se podia – e devia – atribuir parte dos males da ditadura militar. Sem condescendência.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)