Em maio de 2007, as associações do chamado “campo público de comunicação” assinaram um manifesto em defesa de uma TV pública independente e democrática que ficou conhecido como Carta de Brasília. Redigido para expressar a voz e reivindicar a vez de um conjunto de televisões à margem do sistema midiático brasileiro (as televisões públicas, educativas, comunitárias, universitárias e legislativas), o documento apoiava a proposta de criação de uma rede pública organizada pelo governo federal desde que pudesse “ampliar e fortalecer, de maneira horizontal, as redes já existentes”.
Sete anos depois daquele momento histórico que gerou o documento, no I Fórum Nacional de TVs Públicas, ativistas, pesquisadores, parlamentares, profissionais de comunicação e cidadãos em geral voltaram a debater o tema, no Fórum Brasil de Comunicação Pública, realizado nos dias 13 e 14 de novembro na Câmara dos Deputados. No entanto, a pergunta que permanece no ar ainda é a mesma: Quais os desafios que se colocam para os meios públicos de comunicação no Brasil e como enfrentá-los?
Entre os sete anos que separam a primeira Carta de Brasília de um novo manifesto produzido em 2014 está um caminho ainda inconcluso de mudança na radiodifusão pública no Brasil, que não conduziu na direção que apontavam os anseios das associações de TVs do campo público e dos movimentos sociais pela democratização da comunicação. A criação da TV Brasil, com o surgimento da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que também está prestes a completar sete anos (em 2 de dezembro de 2014), levou a um modelo de comunicação pública com maior participação do Estado e ainda marginal no contexto midiático brasileiro.
O que temos?
A dificuldade para se definir a missão e os desafios da comunicação pública tem raízes na própria Constituição Federal de 1988, que aponta a complementaridade entre os sistemas público, estatal e privado de radiodifusão, em seu artigo 223, sem que haja qualquer definição do que se trata cada um destes conceitos (esta questão foi analisada no artigo publicado na Revista EPTIC Online, “O público em disputa: debates sobre a televisão pública nas políticas brasileiras de comunicação“).
A I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada pelo governo federal em 2009 com ampla participação social, encarou este problema e propôs um entendimento a partir dos modelos de gestão:
** Público é o que é gerido de maneira participativa e com controle social, a partir da possibilidade de acesso universal dos cidadãos à estrutura dirigente;
** Privado é o sistema formado pelas entidades privadas, sejam comerciais ou não, com formato de gestão restrito;
** Estatal é o sistema constituído pelos serviços controlados pelas instituições públicas vinculadas aos poderes do Estado nas três esferas da Federação.
Apesar de ser um entendimento construído a partir de um espaço legítimo de deliberação com participação social, algumas questões permanecem sem definição. Não há respostas para desafios como modelos de financiamento, programação e sobre a relação dos meios públicos com a construção da cidadania. Gestada no bojo dos anseios por uma comunicação para além da mídia comercial, a Carta de Brasília de 2007 já apontava para a necessidade da TV pública ser um espaço de diálogo e expressão para as múltiplas identidades do país e para as diversidades de gênero, étnico-racial, cultural e social brasileiras. Para isso, deveria ser uma TV apartidária, independente em relação a governos e a mercados e que contemplasse a produção regional e independente. E mais, havia uma preocupação pouco debatida, mas que diz respeito ao impacto real da comunicação para as pessoas: a TV deveria estar ao alcance de todos os cidadãos e inovar os parâmetros de qualidade e aferição da audiência, embora não devesse se pautar por critérios mercadológicos.
As cenas que se seguiram levaram a um modelo de radiodifusão pública que não contemplou as reivindicações da sociedade civil expressadas na Carta de Brasília de 2007. A empresa criada pela lei 11.652 de 2008 (ver aqui) para gerir os serviços de comunicação pública do Governo Federal não reverteu o lugar marginal a que estão submetidas as emissoras comunitárias, universitárias, legislativas, públicas e educativas. O projeto não representou o fortalecimento do campo como um todo, mas o surgimento de uma instituição central ligada ao Executivo federal.
Também a gestão não permitiu o protagonismo da sociedade, como se reivindicava. O Conselho Curador permanece como um espaço aberto à participação social, por meio da consulta pública para a escolha de seus membros, mas tem um papel apenas consultivo. Já a demanda da sociedade civil era por um órgão deliberativo para definir as diretrizes de gestão, programação e fiscalização, em que o governo não tivesse maioria.
O que podemos?
A luta pela construção da comunicação pública é um caminho necessário para garantir a cidadania e os direitos à comunicação, à informação e à cultura. A criação da EBC e da TV Brasil foi um primeiro passo, mas inconcluso, marcado pela “lógica do possível”: o entendimento dos movimentos sociais era de que a iniciativa requeria apoio, ainda que não correspondesse ao almejado, porque era o que dava para se fazer naquele contexto.
Porém, o debate não cessou. Movimentos sociais, trabalhadores e pesquisadores do campo sustentaram essa bandeira em espaços de discussão como o II Fórum Nacional de TVs Públicas, em 2009, no Fórum de Rádios Públicas e mesmo na I Conferência Nacional de Comunicação. Finalmente, o Fórum Brasil de Comunicação Pública deste novembro de 2014 é fruto dessa articulação originada a partir da atuação das associações de emissoras não comerciais e das entidades ligados à democratização da comunicação. Entre as organizações envolvidas no encontro estão o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), o Coletivo Brasil de Comunicação Social – Intervozes, a Frente Nacional pela Valorização das TVs do Campo Público (Frenavetec), a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o Conselho Curador da EBC e as Associações Brasileiras de Televisões e Rádios Legislativas (Astral) e de Televisão Universitária (ABTU).
Enquanto em 2007 se falava apenas de TV e as propostas pareciam sonhar com a criação de uma BBC brasileira, a Carta de Brasília de 2014 (ver aqui) emerge como uma articulação ampla de ativistas, pesquisadores e trabalhadores para a defesa da comunicação pública, abrangendo todas as plataformas.
Também mudou o cenário político de articulação para essa pauta: em 2007, havia sido criado um espaço de interlocução com o Ministério da Cultura, por meio do ministro Gilberto Gil e do secretário de Audiovisual, Orlando Senna. Sete anos depois, os movimentos sociais da comunicação encontram diálogo em um segmento do Poder Legislativo, representado pela Frente Parlamentar pela Liberdade e o Direito à Comunicação com Participação Popular (FrenteCom), e a inserção no governo federal é mais restrita. Quanto ao conjunto de reivindicações, a consolidação do Sistema Público de Comunicação passa a ser entendida como um pilar da democratização da comunicação. Questões dos chamados “excluídos” da comunicação são priorizadas, como a descriminalização das rádios e TVs comunitárias e a valorização dos trabalhadores do campo público.
Ainda permanecem como desafios a garantia de sinal aberto e a implantação do Operador Digital de Rede Único e Gratuito para contemplar o conjunto de emissoras que compõem o campo, o que remete a uma concepção de um sistema público descentralizado e fortalecido. Na gestão, ainda é preciso garantir que todas as emissoras sejam administradas com participação da sociedade e dos trabalhadores e trabalhadoras – aspiração ainda bem distante da realidade, especialmente no que se refere às instituições ligadas aos governos estaduais, que possuem normas dispersas e contraditórias.
Já em relação à programação, as únicas referências da Carta de Brasília de 2014 remetem à necessidade das mídias públicas serem um canal para conteúdo colaborativo e jornalismo participativo, além da reivindicação central já colocada sete anos atrás sobre a produção independente e a diversidade, agora ampliada para as dimensões étnica, racial, geracional, religiosa, regional, de gênero e de orientação sexual.
Entretanto, ainda há muito que se discutir sobre a identidade e a programação do sistema público. Esses meios podem ser de fato um espaço de voz e representação para diferentes segmentos da sociedade? Como promover a qualidade sem se limitar aos padrões estéticos da mídia comercial? Como cumprir a missão pública sem restringir o diálogo a “guetos” e a uma pequena parcela dos públicos? Como pensar um jornalismo e principalmente um entretenimento com caráter público?
À luz das propostas da nova Carta de Brasília e ao celebrar os sete anos da TV Brasil, no próximo 2 de dezembro, esse é um momento oportuno para manter viva a discussão e avaliar o que já foi feito e o que ainda precisa ser construído em um campo essencial para a cidadania comunicativa.
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Luiz Felipe Ferreira Stevanim é jornalista e doutorando em Comunicação