Gostaria de intitular este trabalho de ‘A queixa de Semprun’ e dedicá-lo ao franco-espanhol Jorge Semprun, escritor e militante da causa democrática. Indispensável, porém, estabelecer uma premissa:
O totalitarismo é um conceito estático, sem nuances ou meios-termos. A democracia e a democratização são processos dinâmicos, às vezes retilíneos, outras vezes ziguezagueantes, às vezes vagos e omissos. A democracia pode ser relativizada, nuançada. Inclusive com a existência paralela de focos totalitários ou autoritários decorrentes de situações antigas não reavaliadas ou situações novas avaliadas precariamente.
Esta flexibilidade do processo democrático pode ser entendida de diversas formas e pode gerar inúmeras contradições. Jorge Semprun, quando ministro da Cultura do governo de Felipe Gonzalez, diante de uma perversa cruzada de denúncias da imprensa conservadora espanhola em meados dos anos 1990, fez a perturbadora declaração ao diário El País: ‘A questão da liberdade de expressão é um dos problemas não resolvidos pela democracia’.
O surpreendente ceticismo do escritor, cujos compromissos com a causa democrática e humanista não podem ser colocados em dúvida, tem a ver com a impossibilidade de estabelecer paradigmas para medir o grau de democracia de um determinado regime. A democracia espanhola então vigia plenamente, mas a liberdade de expressão poderia estar comprometendo a própria vigência do processo democrático.
Isto significa que a democracia é imponderável, obrigatoriamente insuficiente. Há sempre uma brecha para ser reparada, um passo adiante para ser dado, uma nova necessidade a ser satisfeita. A sociedade humana cria continuamente novos parâmetros sociais, econômicos e tecnológicos que o sistema democrático deve estar apto a acompanhar e proteger.
Para caracterizar um regime como democrático não bastam a Constituição, os códigos legais e a estrutura institucional baseadas na defesa dos direitos humanos, na liberdade de expressão e no equilíbrio entre os poderes. Uma série de fatores condicionadores e relativizadores tornam cada democracia diferente da outra e cada conquista democrática uma exigência para novos passos.
Ao contrário do que possa parecer, Semprun não manifestou uma descrença no sistema. Ele apenas indicou que estamos diante de um processo em construção, um desafio para os inquietos e insatisfeitos que não se contentam com formalidades.
A questão da liberdade
A democracia não é finita, está sempre em busca de avanços, inacabada e inacabável, é uma das missões intermináveis de que falava Immanuel Kant (1724-1804). Democracia é uma competição sem ponto final. Por isso, é mais correto falar em democratização do que em democracia. Melhor estudar modelos de verificação das liberdades do que contentar-se com fórmulas estatutárias rígidas que freqüentemente não saem do papel ou são implementadas insuficientemente.
Colhidos no noticiário recente, aqui vão alguns exemplos desta variedade e diversidades de parâmetros democráticos:
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Brasil e Argentina praticamente igualam-se, estão no mesmo patamar de liberdades, dispõem do mesmo arcabouço para garantir a livre circulação de informações. No entanto, há poucos anos fui a Buenos Aires para mostrar o que aqui fazemos em matéria de discussão pública sobre o desempenho da imprensa. E, não apenas eu, mas também os jornalistas argentinos presentes ao evento, fomos obrigados a reconhecer que neste campo o processo de brasileiro está mais avançado porque leva o debate sobre a qualidade da informação para o âmbito do destinatário da informação – o público. Se a participação do leitor é um índice capaz de aferir o nível de democratização, neste ponto temos vantagens sobre nossos vizinhos.**
Agora olhemos para o norte: Brasil e Estados Unidos dispõem de órgãos legitimados pelo Senado para examinar questões relativas à Comunicação Social. Aparentemente estariam no mesmo nível de democratização. No entanto, enquanto a FCC (Federal Communications Comission) é uma agência reguladora com poder efetivo para controlar a questão da concentração da imprensa e evitar abusos nos meios eletrônicos, o nosso Conselho de Comunicação Social é apenas um órgão consultivo do Congresso Nacional, um fórum para levantar questões, sem poder, quase decorativo.**
Ainda nesta esfera: enquanto o Senado dos EUA tem legitimidade para vetar ou reverter certas resoluções da FCC, o Congresso brasileiro não tem qualquer credibilidade nesta matéria porque grande parte dos deputados e senadores são proprietários de empresas de comunicação eletrônica numa evidente situação de conflito de interesses. Impossível qualquer alteração no status quo, os congressistas jamais abdicarão de seus privilégios mesmo que o nosso Conselho de Comunicação Social venha a manifestar-se neste sentido.**
Na França e em alguns países europeus, os principais veículos dispõem de Conselhos de Redação ou Comitês de Redatores democraticamente eleitos pelos jornalistas para funcionar como moderadores entre os acionistas da empresa e aqueles que foram escolhidos para dirigir o veículo. No entanto, no ano passado o Comitê de Redação do Le Monde curvou-se à determinação dos chefes da redação e demitiu um dos jornalistas mais conhecidos na França – o crítico de TV Daniel Schneidermann – porque este ousou criticar o jornal num livro de sua autoria (Le couchemar médiatique). Isto significa que o Comitê de Redação, um dos instrumentos mais avançados para promover a democratização dentro dos meios de comunicação, num dos melhores jornais do mundo, funcionou como entidade repressora, totalitária.**
O famoso The New York Times, considerado um jornal de referência mundial, causou uma comoção mundial quando expôs com grande destaque os erros, adulterações, invenções e plágios cometidos por um jovem repórter da editoria de assuntos regionais, Jayson Blair. A direção do jornal demitiu-o, substituiu o comando da redação, alterou os procedimentos internos e contratou um ombudsman para evitar repetições. No entanto, um ano depois da invasão do Iraque, quando os editores do jornal perceberam que foram enganados pelo governo de George W. Bush no tocante à existência de arsenais de armas de destruição em massa, esses editores publicaram um mea-culpa comparativamente discreto – esquecidos de que àquela altura os erros de avaliação do jornal haviam contribuído para tirar a vida de um milhar de soldados americanos.**
Para contrabalançar a hegemonia dos canais all news da TV americana, e oferecer ao mundo árabe uma cobertura mais equilibrada e mais democrática do que acontece no Oriente Médio, foram lançados dois canais em língua árabe – al-Jazira e al-Arabia. Mas os países proprietários destes canais estão longe de ser considerados democracias e o seu noticiário está longe de oferecer aos respectivos públicos uma cobertura eqüidistante. Pergunta-se: o mero confronto entre coberturas igualmente manipuladas é suficiente para eliminar o fanatismo e promover o diálogo?Pode-se listar pelo menos uma dezena de discrepâncias e variáveis em matéria de democratização do processo informativo. E, como Jorge Semprun, podemos reconhecer que embora a democracia esteja consolidada há quase 60 anos em grande parte do mundo, a questão da liberdade de expressão ainda não conseguiu ser equacionada de forma consensual.
Relação transparente
Deixando de lado nuances e sutilezas, é perfeitamente possível distinguir um regime totalitário de um regime democrático. Sob o ponto de vista jurídico e ‘cientifico’, o diagnóstico é possível: basta conferir regulamentos, estatutos, códigos e suas aplicações. Mas ainda não nos demos ao trabalho para diferençar um processo dinâmico de democratização dos meios de comunicação dos processos que vigoram numa democracia formal e estática.
A queixa de Semprun situa-se no plano subjetivo e moral, mas também pode ser encarada de forma concreta e objetiva. A democracia pode resolver os imponderáveis e as contradições da liberdade de expressão sem afastar-se dos seus compromissos essenciais. É possível converter os eufemismos e as hipocrisias das democracias formais em movimentos transparentes e reais sem colocar em risco qualquer das conquistas democráticas dos últimos 200 anos. Basta que a dialética democrática seja levada às últimas conseqüências.
O que poderíamos chamar de ‘A queixa de Semprun’ não se situa no plano da quimera impossível de alcançar. Um elenco das variáveis e, principalmente, o estabelecimento de metas a serem alcançadas pode converter-se num ‘mapa da estrada’ cujo destino é a democratização continua. Algumas destas metas:
** Evitar a concentração e a propriedade cruzada de veículos, sobretudo nas pequenas e médias comunidades. Onde houver uma mídia concentrada haverá limitações à diversidade informativa, ponto fulcral do sistema democrático.
** Impedir a presença do Estado no processo informativo. Seja como proprietário de veículos de informação ou como distribuidor de verbas de publicidade para os veículos de informação, o Estado não pode interferir – a não ser ampliando seus canais informações e o acesso público a eles.
** Transformar os veículos estatais numa mídia alternativa, efetivamente pública, sujeita ao escrutínio da sociedade, apta a manter-se eqüidistante da competição entre as empresas privadas e as fontes de informação do Estado.
** Procurar a completa separação entre os poderes de modo a evitar que nem o Legislativo ou o Judiciário possam influir no sistema informativo, a não ser por meio de emendas ao texto constitucional.
** Instituir corregedorias parlamentares para impedir que representantes do povo sejam também concessionários de meios de comunicação eletrônica. Tornar esta dupla situação um obstáculo ao desejado equilíbrio entre os poderes.
** Iniciar o debate para a criação de uma agência reguladora específica, legitimada pelo Congresso, capaz de reparar distorções na esfera da mídia eletrônica, compatibilizar as novas tecnologias ao espírito da legislação vigente e garantir a livre competição.
** Estimular a criação de códigos e mecanismos auto-reguladores transparentes e públicos em veículos, corporações ou segmentos da indústria de comunicação.
** Estimular a criação de entidades no Terceiro Setor dedicadas à promoção do debate público sobre o desempenho dos meios de comunicação.
** Estimular – inclusive com instrumentos fiscais – a criação de Comissões de Redação e/ou Ouvidores com os seus nomes constantes nos expedientes dos veículos.
** Tornar públicas as dívidas fiscais das empresas de comunicação para tornar transparente o relacionamento do Poder Executivo com a mídia.
República mais aberta
Obviamente, este é apenas um esboço inicial, ponto de partida. A idéia subjacente neste conjunto de estímulos é desenvolver o conceito de ‘controle social’. A palavra controle é usada aqui na sua acepção inicial, francesa – contr’role, algo como oposição, contrapartida ou contrapoder.
Contrapoder é a palavra-chave. Quando a imprensa na condição de contrapoder for capaz de gerar – ou pelo menos não impedir – a criação de contrapoderes capazes de evitar os abusos que ela mesmo possa cometer, estaremos implantando um moto-contínuo democrático apto a corrigir-se permanentemente. Esta é a democratização sem limites.
A essência da ‘queixa de Semprun’ está na idéia de que a mídia deve resistir à tentação de converter-se em poder político ou protagonizar o processo político.
A democratização da mídia compreende um processo contínuo de democratização dentro do próprio aparelho do Estado. Uma República menos olímpica e mais aberta à participação nunca será totalitária. E se a mídia pretender converter-se num instrumento desta democratização precisará abdicar de alguns de seus privilégios. Caso contrário, continuará sendo apenas uma aproveitadora de suas vantagens.