Os telejornais da véspera deram destaque e a imprensa em geral registra na quinta-feira (27/11) que a capoeira, “expressão cultural descrita como luta, dança e jogo acrobático”, foi declarada patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. A justificativa da decisão diz que a capoeira simboliza a resistência negra no Brasil durante o período da escravidão. A notícia deve encher de orgulho milhões de brasileiros, e assim se passa mais uma camada de verniz sobre a questão histórica da escravidão e seu legado de desigualdades.
A capa genérica do nacionalismo cumpre tradicionalmente o papel de ocultar a vergonha das sociedades modernas que se recusam a enfrentar suas mazelas. Políticas de cotas e outras medidas corretivas podem amenizar o efeito econômico dos tratamentos diferenciados segundo a etnia, a cor da pele ou o gênero, mas não resolvem a questão da má consciência social.
A mídia tradicional cumpre um papel central nesse processo de tapar com a peneira o sol que nunca foi para todos, ao oferecer um discurso apologético e ufanista sobre o reconhecimento do valor cultural de uma prática que, com muita certeza, não é autenticamente brasileira.
A capoeira, como luta, dança ritual ou acrobacia, está descrita nos mitos de origem do mundo segundo os khoisan, povo africano transcendental mais conhecido como bosquímanos. Trata-se de um dos povos mais antigos do planeta, a se considerar o conceito de organização tribal conectada e conformada por técnicas, crenças, fisiologia comum e tradições.
Eles carregam em seu DNA as características mais próximas das raízes da espécie humana, e sua história os conduz dos primeiros passos do homem até o início do tráfico de escravos negros para o continente americano. São indivíduos de estatura mais baixa e de corpo mais esguio do que os demais africanos, com olhos oblíquos como os orientais, e eram conhecidos como caçadores, coletores e capazes de fazer boas colheitas em pouco espaço e tempo curto.
Na origem do mundo
A tradição oral dos bosquímanos é riquíssima e registra até mesmo o ponto de ruptura entre o homem natural e o homem moderno, no conto que relata a criação do fogo e a separação entre homens e animais. Numa dessas histórias, o filho do criador do mundo o resgata da morte e lhe ensina os movimentos básicos da prática que é hoje conhecida como capoeira. Estão descritos claramente nesse conto tradicional a ginga, o engodo, a rasteira e toda a natureza acrobática da capoeira.
Alguns de seus agrupamentos viviam na região conhecida como Angola quando começou o transporte de negros para a colônia portuguesa no Brasil. Misturados aos bantos, eles se concentraram na Bahia, mas também formaram colônias no Norte, entre o Maranhão e o Pará, e no Sudeste, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Essa é provavelmente a origem da confusão que se criou, dando aos bantos da Bahia, vindos de Angola, o crédito pela criação desse bem cultural.
Mas tudo isso é apenas assunto para boas conversas. O que se quer aqui representar é a prática jornalística de utilizar meias-verdades e estereótipos para escapar à tarefa de enfrentar os dilemas da modernidade e do capitalismo. Não se corrigem as desigualdades com anúncios ufanistas, mas aqui e ali muitas consciências se sentem confortadas com o fato de que uma tradição nascida como símbolo de resistência contra a tirania acaba reconhecida como patrimônio da humanidade.
Mais útil do que o ufanismo em torno da decisão da Unesco é a reportagem de página inteira publicada na edição de quinta-feira (27) do Globo (ver aqui) sobre a vida do africano Mahommah Baquaqua, que foi escravo no Brasil no século 19 e se tornou homem livre nos Estados Unidos. O livro original, publicado em 1854, está sendo traduzido para o português e deve ser lançado no Brasil até o final do ano que vem, segundo o jornal carioca.
Pode ser uma janela para reconhecer nosso passado escravagista. Mas a imprensa precisa também olhar a escravidão do presente e o preconceito que persiste até mesmo em suas redações. Nesta quinta-feira, o portal Comunique-se relata debate no qual se afirma que jornalistas negros são quase sempre destacados para cobrir temas como samba e criminalidade (ver aqui).
Em várias estradas do interior, principalmente no Centro-Oeste, a Polícia Rodoviária Federal faz vistas grossas para o tráfico de jovens recolhidas em comunidades do interior e levadas para prostíbulos nas regiões onde se constrói a infraestrutura do Brasil moderno.
Até quando?