A revista Veja São Paulo fez uma reportagem de capa sobre o envolvimento da ex-modelo matogrossense Loemy Marques com o crack. Loemy, uma linda jovem movida pelo sonho de fazer sucesso na carreira de modelo, veio para São Paulo, igual a muitos outros jovens, e hoje, aos 25 anos, encontra-se desorganizada pela dependência química. Sua vulnerabilidade social, e as dificuldades emocionais decorrentes da falta de elaboração da sua história, resultaram no envolvimento com o crack num momento de desorientação frente às dificuldades inerentes à profissão.
Muitas outras mídias criticaram a Veja São Paulo por escolher retratar a história de uma jovem – loira, de olhos verdes, 1,79m de altura e beleza indiscutível – em meio a tantos outros jovens com problemas decorrentes do uso de crack. A reportagem de Ricardo Senra, BBC de SP, merece destaque: traz a opinião de Tina Galvão (71 anos), assistente social, que trabalha diretamente com os usuários de crack, e dados importantes sobre a (in)eficácia do modelo tratamento por internação compulsória. Entre os comentários que Tina Galvão faz sobre os problemas gerados pela Veja, ao escolher fazer a reportagem sobre alguém cuja beleza atende aos padrões midiáticos, em detrimento dos demais usuários, a assistente social traduz a falência de um modelo de tratamento que elide: deliberação, e paciente. Usando termos que não poderiam ser mais diretos, talvez pela aproximação engajada com aqueles a quem Tina Galvão atende, ela declara: “Quem ‘pita’ é que apita.” “Quando [a opção pelo tratamento] não parte do usuário, a droga costuma vencer” Tina Galvão.
A reportagem da BBC ainda complementa a constatação acima com resultados de uma pesquisa feita pela Fundação Oswaldo Cruz com usuários de crack de todos os estados do país e no Distrito Federal, endossando a opinião de Tina. O estudo, divulgado neste ano, indica que menos de 5% dos entrevistados completam seus tratamentos contra a dependência.
Tratamento de dependentes
A ideia governamental de internação compulsória demonstra-se falha pela própria ineficácia. O que será que justifica um investimento financeiro público tão alto num tratamento de resultado tão insuficiente em termos estatísticos?
A promessa de um tratamento de resultado rápido se mantém?
A demanda imediatista, todos sabemos, se formulou na cidade de São Paulo pela intenção de desocupar o Centro Velho que, em meados de 2011, tornou-se área de especulação imobiliária.
Como se Michel Foucault (1926-1989), filósofo francês, não tivesse discutido em vasta bibliografia as relações de poder para o fortalecimento do corpo social em detrimento dos donos dos corpos disciplinados: os proponentes da internação compulsória parecem desprezar a existência de um conhecimento consagrado mundialmente há mais de cinquenta anos acerca da biopolítica. Talvez outros interesses estejam sobrepostos aos Direitos Humanos na decisão pela internação compulsória.
De boas intenções o inferno está cheio.
Sabemos que o governador Geraldo Alckmin (PSDB) sancionou a Lei nº 15.550 de 2014, de autoria do deputado Luiz Carlos Gondim (Solidariedade), que autoriza o Poder Executivo a celebrar convênio com clínicas particulares, associações comunitárias, igrejas, organizações não-governamentais e entidades que prestam atendimento e tratamento aos dependentes químicos (drogas ilícitas) e álcool. O decreto foi publicado no Diário Oficial do estado no dia 1° de agosto de 2014. O projeto havia sido aprovado no plenário da Assembleia Legislativa no dia 4 de julho de 2014.
Os Conselhos que legitimam os tratamentos estão submetidos aos Poderes: Legislativo, e Executivo.
Sobre o tratamento
Uma das especializações gratuitas oferecidas àqueles que trabalham com dependentes químicos, com a proposta de “prevenção, intervenção, e encaminhamento”, é ministrada: com um conteúdo aos profissionais de saúde; e outro adaptado aos líderes religiosos, e de movimentos sociais. O curso Supera, uma das especializações da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com duração de três meses na modalidade de ensino à distância (EaD), apesar de abrangente em termos de número de pessoas que podem ter acesso ao conteúdo, não pode ser o único contato com o conhecimento para pessoas que se engajam no envolvimento profissional para lidar com pessoas numa situação tão vulnerável. Questionado sobre este curso também ser oferecido a leigos que são líderes religiosos, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) declarou participar de algum modo na transmissão das diretrizes educacionais no intuito de zelar pelos Direitos Humanos. Afirmou repudiar o financiamento público direcionado às comunidades terapêuticas. Essas comunidades funcionam com a autorização do Ministério da Saúde (MS), da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) pertencente ao Ministério da Justiça (MJ), e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Questões que se colocam.
Será que a liberdade de culto é observada quando o tratamento é conduzido por líderes religiosos? Será que a história do paciente, seus desejos ambivalentes, relatos necessários de encontro traumático com a sexualidade, tem lugar num tratamento oferecido numa igreja? Existe tratamento possível sem a integração da história de vida do paciente? Há possibilidade de “prevenção, intervenção e encaminhamento” sem a criação e a garantia de políticas públicas que não abandonem os indivíduos à própria sorte na “selva” do mundo neoliberal?
Referências
>> “Desdentados da cracolândia também merecem atenção social“
>> “Uma entrevista com Foucault“
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Katia Bizzarro é psicóloga e psicanalista