Jornalismo não é nem nunca foi espelho do real. Talvez algumas redações tenham tentado ser. Mas não conseguiram por um simples motivo: a realidade é intangível, inalcançável em sua totalidade. O que pode ser registrado são pequenos fragmentos que a constituem. Aquilo que os repórteres, quando enviados para uma cobertura, ponderam mais importante destacar entre uma infinidade de ocorrências.
A Teoria do Espelho, lembrada por Felipe Pena no livro Teorias do Jornalismo, reproduz o que foi, durante muito tempo, senso comum das empresas de comunicação e da própria sociedade. O jornalismo deveria ser um reflexo da realidade, retratando-a em sua plenitude com base na isenção inerente à profissão. A visão é romântica, pois não precisaríamos caminhar muito pelos campos da mente para entender que não existe transmissão objetiva de significado, isto é, não há fatos, tudo é interpretação de alguém que faz uma matéria, por exemplo.
Vejamos um exemplo que explicita essa questão. Um jogo de futebol é formado por um púbico altamente diversificado. Há pessoas de todas as classes, cores, credos e opções humanas possíveis. Quando a partida começa, todos os olhares são direcionados para a região do campo onde a bola está concentrada. Essa é a realidade que as emissoras de televisão e rádio trazem à tona, explicando as jogadas. Mas e todo o resto? O radialista não repercute o menino que toma sorvete na arquibancada; a TV não grava a intensidade de um casal que comemora apaixonadamente durante o grito de gol. Enfocam outras abordagens no contexto do encontro futebolístico. No estádio, por mais insignificante que seja um fato, ele compõe a realidade, e uma reprodução fiel, sedimentada pela Teoria do Espelho, deveria incluir todos os aspectos da cena – todos os acontecimentos que envolvem 45 ou 50 mil pessoas que torcem pelo clube do coração.
Visões de mundo
Tamanha atividade seria, por si só, humanamente impossível. Logo, reforçamos a tese de que a realidade é inatingível. Mas os jornalistas se esforçam, a fim de reportar os principais elementos de um evento. Em primeiro lugar, eles primam pela ideia de construção social da notícia, em que as informações são processadas por meio da cultura profissional do repórter, organização do trabalho e organograma produtivo. Em segundo, o próprio discernimento (faro, intuição, percepção, curiosidade, atenção), que tria, entre uma superabundância de fatos, aqueles que merecem um destaque especial.
A Teoria do Espelho já foi aceita em décadas passadas, buscando dar credibilidade ao fazer jornalístico, mas caiu no esquecimento após a ascensão de pressupostos mais exequíveis, como é o newsmaking. Nem por isso ela precisa ser descartada. Academicamente falando, o espelho constitui ciência, pois mostra o óbvio: jornalista não é onipresente, onipotente e onisciente. Se fosse, talvez conseguisse fazer um relato 100% verídico do que vê, o que tornaria o mundo um lugar excessivamente pragmático.
O repórter, em suma, é um agente do povo; um indivíduo que recebe delegação tácita para ser os olhos e ouvidos onde as pessoas não podem estar, sempre primando pelo interesse da maioria. Se a realidade não existe, o jornalismo se operacionaliza há séculos para traduzi-la de uma forma aceitável ao público, mesmo que apenas uma fração representativa dela. Trata-se de um trabalho técnico e difícil, pois a percepção de um sempre será diferente da do outro. Destarte, essa é a principal incumbência da profissão: aproximar visões de mundo, sem a pretensão de ser dono da verdade. Afinal, ninguém é.
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Gabriel Bocorny Guidotti é bacharel em Direito e estudante de Jornalismo