Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo de horrores

Gentil e visceralmente, o poeta Eugênio Giovenardi propõe versos para melhor alertar a Humanidade sobre os perigos comportamentais oriundos do distanciamento da sensibilidade, levando, por exemplo, pessoas a cometerem atrocidades violentas que prejudicam a qualidade de vida no mundo. No livro Ventos da alma (2003), especialmente nos poemas “Preocupações” e “Horrores cotidianos”, Giovenardi destaca criticamente o peso da violência simbólica (mãe da violência física) promovida pelo jornalismo sensacionalista.

Cada agente midiático é responsável por aquilo que diz/escreve, num nível existencial em que nossos compromissos éticos, políticos e estéticos encontram-se e ligam-se estreitamente. Ao naturalizar a tristeza, a “imprensa marrom” contribui para a transformação do horizonte colorido em totalidade cinzenta, fazendo-nos crer que a felicidade é um tipo de “impossível desnecessário”, projetando, assim, um “efeito estufa” no qual o trágico é alçado perigosamente como resumo mais apropriado do humano.

No primeiro poema assinalado, Giovenardi utiliza o recurso da enumeração gradativa, negativamente condicionada a processar automaticamente a realidade social como se ela fosse um mero conjunto de quinquilharias atitudinais ordinárias. O cotidiano é empobrecido por conta da ausência do sublime, favorecendo a proliferação nefasta do império do grotesco:

“O juro da caderneta,/ a flutuação do dólar,/ a conta da luz,/ a antena da tevê,/ o mau humor da empregada,/ as bebedeiras do caseiro,/ a ausência dos amigos,/ a superficialidade das telenovelas,/ a indiferença dos funcionários/ do Correio e da Telebrasília./ As queimadas criminosas e primitivas,/ os alarmes dos carros,/ os cavalos de pau/ e os pegas noturnos,/ os meninos de rua,/ os cuidadores de carro,/ os ladrões de banana,/ os anões do congresso,/ os políticos ladinos,/ os corruptos insignes,/ as falas do presente,/ os protestos inúteis do cidadão,/ as imunidades da corte,/ as impunidades legais./ Brazagallo, brazico, Brasil,/ o imenso carnaval continental,/ a irresponsabilidade geral.”

Muros antissociais

Interessa-nos, de perto, perceber como o poeta apela objetivamente para o meio descritivo no sentido de melhor dissertar sobre a pequenez de nossas preocupações que impedem a experiência da vida em plenitude. Considerar tudo o que se passa como mínimo também prejudica a sensibilidade humana como linguagem afetiva capaz de acolher as sutilezas variadas, conforme a natureza específica e relacional de cada matéria. Cair no conto da mesmice é, assim, perder de vista o que de maravilhoso acontece, aceitando o enfadonho como única instância do real. Nesse sentido, “a antena de tevê” e “a superficialidade das telenovelas”, segundo Giovenardi, fazem parte da lista de fatores negativos que rebaixam ou inviabilizam a nossa potência de agir, mirada na qualidade estética (a procura do belo) e ética (a procura do bem).

Crescem, desse modo, os “horrores cotidianos”, em progressão assustadoramente geométrica. Assim, Giovenardi, no segundo poema citado, prossegue em seu empenho de defender a dimensão afetiva como potência de transformação expansiva. Infelizmente, a imprensa sensacionalista vem se colocando como promotora de muros antissociais, desestimulando consequentemente a construção de pontes comunitárias que possam, de fato, ligar todas as fontes subjetivas de onde brotam todas as riquezas substantivas:

“Incêndio na favela de Heliópolis,/ explosão do shopping de Osasco,/ matanças nas periferias/ de qualquer cidade,/ chacinas no centro de hemodiálise/ de Caruaru./ Mortes em massa na casa de velhos/ Santa Genoveva,/ chacina de sem-terra/ em Corumbiara e Eldorado/ de Carajás./ Sangue, choro, desespero,/ velórios coletivos, solidariedade,/ heroísmo, passeatas, protestos,/ discursos, promessas, fotografias,/ reportagens ao vivo,/ quase anunciadas,/ quase programadas./ Silêncio! enterro das vítimas./ Esquecimento./ Até daqui a pouco./ Até a próxima.”

Violência com indiferença

Está projetada nestes versos uma realidade editorial concreta: a mídia e sua “necrofilia insaciável”. Os destaques jornalísticos oferecem prioridade à melodramatização de um discurso que parece fascinado pelo sangrento e o macabro. Desponta, no jornalismo sensacionalista, a cultura do fait divers (introduzido por Roland Barthes, no livro Ensaios Críticos, em 1964), formado por um mosaico noticioso de ocorrências escandalosas, curiosas e bizarras que, desde o início da imprensa, dão o tom editorial mais apelativo, visando chamar a atenção da audiência. Em ritmo industrial galopante, o mercado noticioso não pode parar. Ele é marcado por fatos que se esgotam, quando cumprida a sua missão efêmera, e que, em seguida, devem ser destruídos: fisicamente, diz-se que os jornais do dia anterior “servem apenas para embrulhar peixe”; psicologicamente, sua memória será substituída por uma novidade no dia seguinte.

O triunfo do jornalismo sensacionalista sobre o jornalismo de reflexão contribui para a atitude passiva de muitos setores da sociedade em relação à violência. Trata-se de um sistema perverso que sobrevive às custas da produção, em larga escala, da “mercadoria da crueldade”, conforme termo cunhado pelo professor Adélcio de Sousa Cruz, em Narrativas contemporâneas da violência: Fernando Bonassi, Paulo Lins e Ferréz (2012). A insensibilidade, frente aos fatos, se agiganta, conforme o alto volume de frases de defeito moral conferidas pela criminosa imprensa do trauma. Bestificados com o teatro de horrores, transmitido diuturnamente pela mídia, fecham-se os olhos para as mazelas do mundo. Tudo em prol de frivolidades que promovam um generalizado escapismo alienador e maléfico. Um atentado à vida deixa de ser preocupante – eticamente falando – por razões de alteridade anestesiada. Muito bem ilustra esta tendência rudimentar a canção De frente pro crime (1975), composta por João Bosco e Aldir Blanc:

“Tá lá o corpo estendido no chão/ Em vez de um rosto uma foto de um gol/ Em vez de reza uma praga de alguém/ E um silêncio servindo de amém/ O bar mais perto depressa lotou/ Malandro junto com trabalhador/ Um homem subiu na mesa do bar/ E fez discurso pra vereador/ Veio camelô vender anel, cordão, perfume barato/ E a baiana pra fazer pastel e um bom churrasco de gato/ Quatro horas da manhã baixou o santo na porta-bandeira/ E a moçada resolveu parar, e então…/ Tá lá o corpo estendido no chão/ Em vez de um rosto uma foto de um gol/ Em vez de reza uma praga de alguém/ E um silêncio servindo de amém/ Sem pressa foi cada um pro seu lado/ Pensando numa mulher ou num time/ Olhei o corpo no chão e fechei/ Minha janela de frente pro crime.”

Um dos maiores agentes difusores e produtores da violência, o fazer sensacionalista povoa o jornalismo de palavras espinhosas, impedindo que a sociedade reconheça seus membros como seres floridos e capazes de oferecer ao mundo o “mel do melhor”. O fel do pior, elevado midiaticamente à enésima potência, provoca um fenômeno extremamente perverso: a “banalidade do mal”, como diria Hannah Arendt. Na “imprensa marrom”, as palavras ficam sobrando, pois não fundam vínculos sociais, não esclarecem mentes e corações, não atraem relações sensíveis e não acrescentam nada de dignificante para a humanidade. Sabemos que a realidade humana encontra-se fundamentada segundo os princípios do bem e do mal, do aperfeiçoamento e da destruição. E para darmos conta desta composição ambivalente, precisamos nela mergulhar mediante a palavra pensada, a palavra consciente.

No sensacionalismo, a palavra escandalizada e pisoteada dá o tom do barulho frenético midiatizado grosseiramente, beneficiando o modelo apressado de cobrir a realidade jornalisticamente. No beco escuro das redações, explodem a violência com indiferença. A respeito, já alertava Carlos Drummond de Andrade, em Poema do jornal (1930):

“O fato ainda não acabou de acontecer/ e já a mão nervosa do repórter/ o transforma em notícia./ O marido está matando a mulher./ A mulher ensanguentada grita./ Ladrões arrombam o cofre./ A polícia dissolve o meeting./ A pena escreve./ Vem da sala de linotipos a doce música mecânica”.

******

Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários