Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Maluf e MST, o silêncio dos sentidos

Que as empresas jornalísticas, especializadas em vender notícias, navegam em direção ao lucro regidas pela cartografia de interesses de poder, é mais do que sabido. Também se torna cada vez mais naturalizado o sentido de que a informação é mercadoria a ser negociada independentemente dos critérios que levem em conta a ética, o respeito e a cidadania. Entrincheiradas pelo sabor dos cifrões já ganhos (e de outros vindouros), as grandes corporações midiáticas se especializam em fabricar sempre novas versões, últimos relatos, dados recentes, furos de reportagem, num bombardeio que cria o efeito de uma permanente e eterna novidade do mundo como elemento mágico a ser emprestado de algum conto fantástico.

Essa característica se une ao ideário da aceleração, que seria necessário para dar conta da realidade ao vivo, em tempo real, isto é, instantaneamente. A verborrágica eloqüência com que âncoras do jornalismo televisivo simplificam e banalizam temas complexos, amontoando rapidamente dados, números, fatos, depoimentos etc., ganha relevo na disposição de falas pouco ligadas entre si, muitas vezes desordenadas, caóticas e desvinculadas de reflexão e crítica verticalizadas.

De modo semelhante, as páginas dos impressos são entulhadas de notícias curtas, manchetes de impacto, fotos chamativas, gráficos facilitadores – recursos que, em geral, promovem exemplarmente o varejo de superficialidade. Tal excesso coloca o leitor e espectador em estado permanente de alerta, pronto a engolir sem degustar as notícias que recebe. A hipnose de entregar-se à novidade dos fatos e a amnésia de não ter refletido sobre eles analítica e criticamente materializam-se como conseqüências desse processo, em que o leitor é conduzido à arena, em cujo centro a notícia é negociada como novidade, espetáculo e mercadoria. (Arbex, 2001). E, em escala industrial, fabricam-se, comercializam-se e vendem-se notícias (Ianni, 1997).

É necessário acrescentar a esse panorama outra característica. Não mais que uma dúzia de cartéis midiáticos monopolizam o mercado de comunicação que circula no país e no mundo, concentrando cadeias de televisão e rádio, jornais e revistas, indústria fonográfica e cinematográfica e provedores de internet (Moraes, 2002). Grupos Globo, Abril, O Estado de S.Paulo, a Folha de S.Paulo, RBS (Zero Hora), Jornal do Brasil, SBT, Record, Bandeirantes, Rede TV! e Gazeta Mercantil postam-se como donas de impérios poderosos e edificam a teia de empresas que controlam a circulação de informações no país, sempre afeitas a negócios que possam evidenciar crescimento econômico e prestígio político. A qualquer custo e a qualquer preço (Santos, 2000).

Candidato ‘humano’

Partindo das condições materiais definidas até aqui, é possível levantar algumas questões sobre o discurso jornalístico – materializado em programas de televisão e rádio, páginas de jornais e revistas impressas e eletrônicas – que promove a circulação de alguns sentidos e o apagamento de outros; que reforça, repete, intensifica e naturaliza alguns dizeres como verdade capaz de expressar e explicar a realidade e silencia tantos outros. O sentido dominante (Orlandi, 1996) cria o efeito de evidência, completude, exatidão, transparência e univocidade, embora outros efeitos de sentido fiquem adormecidos, mantenham-se marginais e resistam, pois é própria da significação a face vária, plural, indomável e subversiva. Assim, o sentido dominante se sustenta a partir do movimento parafrástico de repetição, de retorno ao já-dito e de insistência de uma determinada região de dizeres, que funciona discursivamente em consonância com a posição de classe do sujeito e a sua relação com o poder (e poder dizer).

Tais questões teóricas ajudam a entender o funcionamento discursivo da edição do jornal Folha de S.Paulo, 16 de julho de 2004. Na capa, o candidato à Prefeitura de São Paulo, Paulo Salim Maluf, aparece sorridente com roupa informal e, em típica cena de campanha eleitoral, faz visita à Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Voluntários, na zona norte da capital paulista. Toca o pulso de um paciente moreno, deitado e preso a diversos aparelhos, que lhe pede moribundamente: ‘Mate os bandidos’. O texto que se segue acompanha a fotografia:

‘O candidato do PP à Prefeitura de São Paulo fala com o paciente José Matias na UTI (…) Maluf entrou no lugar – onde estavam internados doentes em estado grave, com respiração artificial e sob controle de aparelhos – acompanhado por cerca de 30 pessoas. A atitude do candidato e do hospital foi condenada pelo Conselho Regional de Medicina, que apontou riscos à saúde dos pacientes e da comitiva.’

A leitura da foto colorida, grande e centralizada com destaque no meio da página, com a exposição do toque das duas mãos, cria o efeito de solidariedade, ou seja, discursiviza que fazer visitas (e, observe-se, não campanha política) a doentes terminais e pacientes entubados seja um ato generoso de Maluf, candidato humano que se preocupa com a saúde pública. Ora, sabe-se muito vem que até mesmo as visitas de parentes são controladas e às vezes barradas em UTI; sabe-se ainda mais, que esse local é reservado a médicos e profissionais da saúde, competentes em sua tarefa de lidar com a vida por um fio, e não espaço para sedução de campanhas políticas sejam quais forem.

‘Nobre’ tarefa

Esses sentidos de condenação foram silenciados, bem como também foram apagados outros sentidos indesejáveis, a saber, o histórico de acusações de corrupção administrativa atribuídas a Maluf, a sua umbilical relação com a ditadura militar e as engenhosas táticas de tratar questões sociais complexas com o jargão ‘Rota na rua’ (só para citar o que é do domínio público). Na materialidade lingüística, ‘O candidato fala com o paciente’, ‘Maluf entrou no lugar’ promovem e efeito de normalidade e aceitação, como se tal visita fosse algo natural e cotidiano, aceito consensualmente e acordado entre todos (pacientes, profissionais da saúde, comitiva e candidato), calando o quanto existe de absurdo, desrespeito, oportunismo e má-fé no ato de invadir tal espaço. Aliás, ao afirmar que ‘Maluf adentra a UTI em busca de votos’, o sujeito desse discurso fez falar o verbo adentrar e apagou outras possibilidades como invadir, entrar à força, apoderar-se, entrar sem autorização, dominar, entre outras.

Isso indicia que, em nenhum momento, a reportagem se coloca de maneira crítica frente à atitude do político, pelo contrário, apenas na página A8 a voz do dono e do diretor-responsável pelo hospital e a UTI se colocam de modo contrário, manifestando desagravo diante da atitude abusada e irresponsável do candidato. Ainda nessa página, outra foto em branco e preto preenche grande parte da superfície, dividindo espaço com a ‘Farmacinha do Maluf’, coluna em que aparecem explicações sobre os remédios consumidos por ele, suas indicações e benefícios. Por fim, declarações-pérola candidato terminam de emoldurar a página: ‘Eu tenho um estoque de remédios. Faço medicina preventiva’; e ‘Se eu fosse cientista, estaria perto de descobrir a cura do câncer’.

Longe de mim analisar depoimentos tão hilários! Entretanto, o que chama a atenção é observar como o jornal se isenta de comentar, avaliar e/ou julgar criticamente a atitude e as barbaridades ditas pelo candidato, apresentando-as como se o jornal cumprisse apenas a nobre tarefa de informar os fatos puramente, executasse um retrato fiel da realidade e pudesse se isentar de qualquer parecer político e/ou avaliação, sob o risco de descumprir o seu manual de pretensa objetividade. Ao silenciar sentidos que pudessem arranhar a imagem do político, expõe-se o monstro travestido de médico, que receita cápsulas de alho, exibe a caixa com os remédios que toma e quer identificar-se com outros brasileiros, sejam doentes ou hipocondríacos. Médico de araque, cuja bula adverte: ‘Com Maluf na prefeitura, a Rota vai para as ruas’.

Do social ao criminal

O mesmo tratamento, tão imparcial e isento de crítica, não ocorre em relação ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. No editorial ‘Caso de polícia’, publicado no mesmo dia e no mesmo caderno, chama a atenção não apenas o tom raivoso, mas, sobretudo, os efeitos de criminalização e condenação, como se vê nos recortes a seguir:

‘Não bastassem as seguidas afrontas à lei em sua rotina de invasão de propriedades, representantes do MST agora acreditam que podem determinar que é ‘justo’ invadir uma delegacia e libertar à força pessoas detidas sob a guarda do poder público. Esse tipo de ação não é novidade no país. Já há anos noticiam-se tentativas de resgate de prisioneiros em delegacias e presídios, algumas delas bem-sucedidas, por parte de quadrilhas e organizações criminosas. É exatamente a esses bandos que o grupo de sem-terra da Bahia nivelou-se na audácia e no completo desprezo pela ordem.’.

O recorte acima coloca em relevo o apelo à ordem e à força da lei e faz parte de uma retórica que não nasceu agora, mas funciona discursivamente de modo a transformar as vítimas da violência na sua causa. Destituídos de direitos de fato, sem posse de terra, violentados pela roleta da fome, miséria e exclusão, são os sem-terra e o MST a síntese histórica e a face da resistência diante de inúmeras violências, execuções, torturas, açoites e extermínio sofridos e ditados pela desigual distribuição de riquezas e pela concentração da terra no país. Transformá-los em origem da violência e de uma miopia histórica, quiçá de uma cegueira completa.

Evocar os sentidos de ilegalidade, quadrilhagem, banditismo para designar os sem-terra silencia as condições materiais de exploração e expropriação a que são submetidos trabalhadores rurais (vários escravizados pelos rincões do país!), camponeses e homens expulsos do campo e desloca a questão do eixo social para a esfera da criminal (Romão, 2002). Faz falar uma inversão de causas e de esfera de poder, transfigura e deturpa a reforma agrária, narrando-a como caso de polícia e, por fim, deslegitima a luta pela distribuição de terra.

Analogia com o teatro

Ao promover a equivalência entre sem-terra, delinqüentes comuns, chefes de quadrilha e bandidos de organizações criminosas, a voz do jornal coaduna e faz ecoar a máxima da ‘Rota na rua’, ainda que a memória dela nos remeta a abusos de autoridade e táticas de extermínio. Na voz da Folha, em geral, os movimentos populares e sociais são tratados com hostilidade e foiçadas de crítica e, no caso em particular, os sem-terra são colocados no lugar de bandidos, responsáveis por um ‘caso de polícia’.

Não seria o caso de demarcar as diferenças formais dos espaços do editorial e da reportagem, alegando que um expressa opinião e outro documenta fatos. Não é a natureza do fazer jornalístico que se discute aqui, mas o mecanismo ideológico que promove a exposição de Maluf na reportagem de capa e o MST no editorial. E seria o caso de perguntar: por que não o contrário? Que dizer, então, e como nomear a atitude de um político com o histórico de Maluf, que afronta normas de um hospital, invade a UTI com 30 pessoas, achega-se ao leito de enfermos a fim de arrancar votos? Por que dois temas convivem no mesmo caderno da Folha, criando efeitos de sentido tão díspares? Tais perguntas nos remetem ao processo da interpelação ideológica (Pêcheux, 1999) e à posição dos cartéis da mídia diante do poder constituído. O jogo subterrâneo de interesses políticos, acordos econômico e conchavos de toda natureza sustenta seleção, espaço, enfoque e rede de sentidos que são permitidos de circular, materializados nas páginas dos jornais, exaustivamente repetidos até que sejam naturalizados como únicos.

Aqui a analogia com o teatro pode esclarecer um pouco: conversas de bastidores, ensaios, acordos sobre papéis, mudanças e improvisos raras vezes se revelam ao público durante o espetáculo. As cortinas se abrem e o produto aparece pronto para deleite, degustação e aplausos. Resta ao espectador a tarefa de crítico atento. Do mesmo modo, as corporações midiáticas também exercitam ensaios com cortinas cerradas e, quando elas se abrem, o importante é vender notícias como mercadoria. Afinal, o show tem que continuar.

******

Professora-doutora da faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo