A semana chega ao fim sob o signo da retórica. O conjunto de declarações, frases de efeito e slogans percorre o círculo vicioso da imprensa e termina em discurso improvisado pela presidente da República no Palácio do Planalto.
Estamos ainda em clima eleitoral, com o Congresso Nacional preparando as bases para um ajuste na economia e a mídia alimentando o clima de conflagração que predominou na disputa das urnas. Como numa versão caricatural da dialética, realidade e discurso evoluem e se contrapõem no ambiente midiático para criar um cenário de crise no campo político. Assim, a manipulação de declarações, suposições e evidências colhidas seletivamente das investigações sobre desvios da Petrobras alimenta frases e atitudes que têm como objetivo cada vez mais claro contestar o resultado da eleição presidencial.
Se não se pode afirmar que está em curso uma manobra golpista, há sinais visíveis de que se cria em Brasília um contexto nocivo à governabilidade. O fato de a presidente da República ter vindo a público para pedir respeito ao resultado das urnas e “às escolhas legítimas do povo brasileiro” significa que o governo sentiu o golpe e se reconhece vulnerável ao processo liderado pelo senador Aécio Neves, candidato derrotado ao Planalto.
Curiosamente, a declaração da presidente foi feita durante solenidade em que firmava convênio com outro líder do partido oposicionista, o governador de São Paulo Geraldo Alckmin. Configura-se, assim, o fracionamento da oposição em duas frentes, uma das quais, representada por Alckmin e seu pragmatismo, condiciona as idiossincrasias partidárias às regras do jogo democrático. A outra frente, liderada pelo senador mineiro, alimenta o discurso radical e estimula manifestações de ativistas dispostos a qualquer coisa para fazer valer sua escolha, que foi derrotada nas urnas.
Ainda que separado por décadas e circunstâncias que correspondem a todo um século de História, convém não esquecer o episódio do incêndio do Parlamento alemão, o Reichstag, em Berlim, ato terrorista que deu a Hitler, em 1933, o último argumento para sequestrar o poder.
Radicalismo político
O leitor crítico da imprensa haverá de imaginar, aqui, que o observador foi possuído pela paranoia da conspiração, e teria razão, se tomasse como literal essa referência. Mas o escritor Klaus Mann já descreveu, no romance biográfico Mefisto, como uma ideia insana pode seduzir uma grande quantidade de cidadãos comuns insatisfeitos com o cotidiano e pouco providos de consciência política.
É nesse campo que atuam os semeadores da irracionalidade abrigados e remunerados pela mídia tradicional do Brasil. Até mesmo a suposta anomia do principal partido da oposição, o PSDB, aparece em artigos e editoriais nos últimos dias, o que lembra bastante a circunstância em que se encontrava a socialdemocracia na Alemanha durante a ascensão do nazismo.
Não há no horizonte um risco semelhante, mas o processo brasileiro tem muitas similaridades com a sucessão de fatos que conduziu os alemães ao desastre. O terreno para o cultivo das insanidades é o mesmo: a falta de educação política de grandes contingentes da população.
Os jornais criticam o PSDB por ter exercido, nos últimos anos, uma atitude pouco aguerrida na contestação ao governo petista. Alguns analistas apostam em uma aproximação maior entre os principais partidos oposicionistas, PSB e PSDB, tidos como moderados, e alguns atores mais aguerridos, como o bloco liderado pelos deputados Ronaldo Caiado (DEM-GO) e Jair Bolsonaro (PP-RJ).
O que não se lê no noticiário é o fato de que a pauta do radicalismo político é criada e alimentada pela própria imprensa, no círculo vicioso citado acima. Ao se referir a esse movimento, ainda que para condená-lo, a presidente da República desce da tribuna simbólica que lhe proporciona o cargo e se mistura à vulgaridade do jogo sujo que corre nas redes sociais e nas páginas da mídia. Com essa atitude complacente e defensiva, ela aumenta o cacife dos que apostam na crise.
A retórica do golpe era apenas isso: retórica. A fala da presidente faz girar a engrenagem da dialética e coloca a tese aventureira dos insensatos no núcleo do poder, como queria a imprensa.
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