Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O bibliotecário de Gabo

“Ele me disse: aqui está a biblioteca”, e Iván Granados passou a reorganizar os livros de Gabriel García Márquez em sua casa na Cidade do México. Começou em 2006, ou em 2007, não se lembra da data exata. Granados, de 42 anos, lamenta não recordar com mais precisão coisas de que deveria se lembrar automaticamente. Quando fala de outros assuntos de seu período de bibliotecário pessoal do ganhador do Nobel, às vezes fica meio parado, interrompe sua explicação; sentado em um banco de bar, olha calado para a entrada de seu hotel em Guadalajara e através de seus óculos grossos se vê os piscas elétricos de uma árvore de Natal.

“Organizar bibliotecas particulares é conviver com gostos profundos, caprichos, manias, partes da personalidade com as quais ninguém convive: os gostos raros, os culposos, inclusive os vazios estão em uma biblioteca”. Granados viajou para a FIL (Feira Internacional do Livro) de Guadalajara para participar da homenagem a García Márquez. Trabalhou em sua biblioteca até a morte do escritor, em abril, e continua indo de vez em quando organizá-la. “Mas agora já não sou o bibliotecário de García Márquez, porque morreu. Ou talvez, porque morreu, sou para sempre o bibliotecário de García Márquez”.

Ele conheceu o escritor quando era pequeno, na Cidade do México, porque sua mãe era amiga dele. Disse que era um senhor com “um carisma muito chamativo”. Recorda uma tarde dos anos 1980, muito antes de ser seu bibliotecário, em que chegou animado dizendo que a sonda Voyager havia passado perto de Netuno e que estava mandando os primeiros sinais do que estava encontrando. Naquela época, Granados, que não era um menino voltado para os livros, começou a ler seus contos. Gostou muito de O Verão Feliz da Senhora Forbes. Vivia no México, mas passou uma época longa na Colômbia. Quando voltou à Cidade do México nos anos 2000, já transformado em leitor de verdade e com estudos em Literatura, seus amigos-gênios colombianos continuavam lá. Um deles era Álvaro Mutis.

Um dia em 2005, pouco antes ou pouco depois, foi visitá-lo. Começaram a olhar a biblioteca e disse a Mutis que ele tinha livros demais encostados, colocados na horizontal sobre a fila vertical. Granados ainda não era bibliotecário, nem havia estudado para ser bibliotecário. Mutis respondeu que os livros encostados eram um pesadelo para ele, um homem tão detalhista que dizia não poder ficar em uma sala com um quadro torto sem se levantar para arrumar. Granados se comprometeu a ajudá-lo em dois finais de semana para colocar tudo em ordem, mas os dois logo se deram conta que isso não bastava. Arrumar a biblioteca de Mutis levou um ano. Algum tempo depois, um grande amigo de Mutis tomou conhecimento da capacidade de Granados para organizar livros, e disse aquele aqui está minha biblioteca.

Rosa amarela

Sem mais indicações, Iván Granados passou a trabalhar nos livros de Gabriel García Márquez, já octogenário. Era uma biblioteca grande, de um espaço único, luminoso, harmonioso, tranquilo. Nos primeiros anos, ia várias vezes por semana, de manhã. García Márquez já estava trabalhando, sentado em sua mesa diante do computador, lendo ou escrevendo.

“Bom dia, mestre”, dizia. García Márquez respondia quase sempre perguntado se ele havia lido tal coisa, ou se havia tomado conhecimento de tal notícia. García Márquez costumava usar macacão. Granados começava a trabalhar, e em duas, três ou quatro horas apenas trocavam algumas palavras. O bibliotecário diz que era “assustador” ver com que concentração e com que dedicação o escritor trabalhava, como se não houvesse nada ao redor. Ele se limitava a “não incomodar”.

Conta que a biblioteca estava organizada de acordo com temas “muito definidos”, que sempre foram uma linha contínua de interesse para García Márquez. Jornalismo, cinema, literatura… Seus amigos escritores tinham uma espaço de privilégio: por exemplo, Mutis e Cortázar. Depois estavam suas referências em outras línguas: Hemingway, Faulkner, Kafka… E muitos dicionário. “Todos que alguém sonharia ter ao longo de toda uma vida”, diz Granados.

Nesses momentos em que para suas explicações e olha para a árvore de Natal, não se sabe se ele já disse o que queria dizer, se não se lembra bem de alguma coisa, ou se calibra com parcimônia para não tocar em nada íntimo. O pouco que diz sobre o interior da biblioteca de García Márquez é que não guardava grandes segredos. “É um autor mais íntimo do que misterioso”, diz. “Ele sempre revelou suas influências e suas leituras”.

“E o que tinha em cima da mesa de trabalho?” “Nada.” “Nada?” “Não. Não tinha nada. Embora ele sempre tenha dito que a única coisa que precisava para escrever era ter uma rosa amarela em sua mesa. Era uma resposta simples para os curiosos.”

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Pablo de Llano, do El País, em Guadalajara (México)