Volta e meia, me pergunto quem é o leitor. É uma pergunta que me angustia. É uma pergunta que inferniza a vida dos que escrevem: escrever, mas sem saber exatamente para quem. O leitor é um enigma – o leitor é a própria pergunta. Lendo um ensaio de Bartolomeu Campos de Queirós, encontro essa afirmação: “Digo sempre que o livro é um objeto, e o leitor, um sujeito. Numa relação entre objeto e sujeito é o leitor quem deve tomar a palavra.” Não só “deve”: indiferente aos desejos e projetos do escritor, o leitor a toma. As palavras lhe pertencem. O leitor é o verdadeiro dono do livro. Poderia talvez dizer mais: ele “é” o livro – pois o livro (o autor) só existe enquanto objeto do qual ele toma posse.
Diz, ainda, Bartolomeu – e o leio em Sobre ler, escrever e outros diálogos (Autêntica, 2012): “Todo leitor se inscreve nas entrelinhas de uma obra. (…) A história do leitor permeia a história do escritor.” Dou um exemplo pessoal: conheço um grande leitor, Flávio Stein. Não só conheço, somos amigos. Quando Flávio lê um autor, ele se transforma nesse autor. Talvez mais que isso: ele toma posse desse autor, o molda a sua voz e a seu estilo. Torna-o seu. Ouvir as leituras de meu amigo sempre me convence de que um texto não tem dono. Ele pertence a quem dele se apossa. E cada leitor faz, de um mesmo texto, vários textos. Faz dele o que quer e o que pode.
Cada leitor constrói seu escritor. O meu Guimarães Rosa não é o mesmo Guimarães Rosa de Flávio Stein. Isso sufoca e cala um escritor? Ao contrário, isso expande sua voz, isso a multiplica. Lembra Bartolomeu Campos de Queirós, em uma reflexão que vai muito além da literatura: “A diferença existe, sobretudo, internamente. Somos movidos por complexos e pessoais mistérios. Basta observar que cada um de nós nasceu do próprio parto. O espírito e a matéria se desenvolvem de maneiras dinâmicas e distintas em cada um de nós.”
Experiência perdida
Diante de um objeto – uma narrativa, um poema, um livro – cada leitor se apresenta como pode. Cada leitor toma posse segundo suas possibilidades e suas feições. Diante dessa constatação, a ideia de autoria se torna quase indecente. Claro: cada texto guarda sua voz, sua singularidade, sua marca pessoal. Mas: uma vez transmitido ao leitor, esses sinais se transformam e se deformam. Cada traço singular de um escritor é, na mente de dado leitor, um traço diferente. A singularidade não se perde, mas se alarga.
Chego aqui à mais escandalosa das perguntas: deformado pelo aluvião de leituras, o que sobra do livro real? Bartolomeu me socorre mais uma vez: “Todo real é uma fantasia que ganhou corpo.” Meu Grande sertão é diferente do seu Grande sertão – porque nossas leituras distintas estão marcadas pela força de nossas fantasias distintas também. O Grande sertão de Flávio Stein só lhe pertence e a mais ninguém. Nem mesmo Rosa continua sendo seu dono – embora (paradoxo) Rosa continue a ser o autor de seu próprio livro.
Por isso não acredito nas leituras críticas que – distantes, arrogantes – excluem o leitor. Afastam a particularidade do leitor. A leitura é um mistério interior. Parece-se com os sonhos: nem nós mesmos, que os sonhamos, conseguimos narrá-los com segurança. Grande parte da experiência – da ficção, do sonho, do poema – se perde nas fendas da mente do sujeito que lê. Por isso é um absurdo ensinar literatura “didaticamente”. Por isso é inaceitável a visão do leitor como um pedagogo – já que maior parte do que ele deseja transmitir lhe escapa. Fica apenas com ele, e nem ele sabe dizer ao certo onde está.
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José Castello é jornalista e escritor