Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre jornalismo e salsichas

“Jornalismo e salsicha: se todo mundo soubesse como são feitos, ninguém consumia.”

Há algum tempo me dedico a refletir sobre o “fazer” jornalístico. O campo de pesquisa é farto e com alguns cliques é possível encontrar artigos e textos ótimos sobre o tema. Eis aqui onde – à parte do trabalho – dedico boa parte das minhas horas online. Pois bem. Há muito a ser discutido sobre o jornalismo. Tantas nuances, tantas perspectivas. O que quero trazer à tona hoje, em resumo é: o processo de produção jornalística deveria importar – e ser reconhecido e valorizado – tanto quanto o produto final.

Não há nenhuma síndrome de Pollyanna na afirmação acima. Explico. Ano passado, durante a 8ªConferência Internacional de Jornalismo Investigativo, promovida pela Abraji, assisti à palestra de Daniela Arbex, jornalista mineira que trouxe à luz uma história terrível sobre o genocídio num manicômio transformado em um verdadeiro campo de concentração no interior de Minas Gerais. A série de reportagens virou livro (Holocausto brasileiro? – imperdível para quem gosta de boas histórias) e Daniela recebeu vários prêmios, inclusive o 2º lugar no Prêmio Jabuti deste ano, na categoria reportagem.

Para chegar ao seu produto final, Daniela dedicou centenas de horas extra trabalho, realizou uma pesquisa intensa junto a órgãos públicos e entrevistou várias pessoas. No congresso, veio a pergunta: “Uma investigação como essa pode levar meses e ter um custo muito alto. Qual foi o investimento?” Enquanto todos esperavam uma resposta na casa dos milhares, Daniela respondeu: “50 reais”. Segundo ela, foi o custo do tanque de gasolina do carro onde ela dormiu em parte da apuração.

Se a próxima pergunta fosse “Mas você se arrepende de dedicar tanto tempo e empenhar o seu próprio dinheiro numa história como essa, com pouco apoio do seu empregador?”, especulo que Daniela responderia “Não, não me arrependo.”

Direitos trabalhistas ignorados

À primeira vista, um leigo pode ser levado a crer que a vida de jornalista é glamourosa ou coisa que o valha. Pois bem, caro leigo desavisado: não é. Os famosos passaralhos são o terror nosso de cada dia e não, eles não perdoam ninguém. O último grande de que se tem notícia ocorreu na Folha de S.Paulo. Na leva de demitidos, figuras como Eliane Cantanhêde, funcionária com 17 anos de casa.

Passaralhos, em geral, são terrenos férteis para eufemismos. “Reestruturação interna”, “corte de gastos”, “integração do online com o digital”, na área das justificativas oficiais. “Você tem muito potencial e pode mais”, “você já não está mais tão motivad@, quem sabe seja a hora de procurar algo que tenha mais a ver com você”, “é uma pena, mas não temos mais como manter você aqui”, na área das (in)justificativas pessoais.

Não pense que passaralhos são exclusivos da “grande mídia”. Pequenos empreendimentos e ONGs jornalísticas também fazem suas demissões. A diferença é que nesses últimos casos os direitos trabalhistas são constantemente negligenciados. Pragas da “PJtização” do trabalho.

Retomo a tese inicial, dedicada a explicar um pouco mais aos leigos sobre o ofício do jornalista. A ideia não é dizer “não consumam, mas consumam de maneira consciente”. Jornalista trabalha muito. Malandros e “ascensões meteóricas” duram pouco numa redação: eles não produzem e não fazem a roda girar. Já os peões? – os repórteres, em sua maioria – trabalham, trabalham e trabalham. Em muitas oportunidades, têm seus direitos trabalhistas ignorados com o velho e tacanho discurso de “faz parte do ‘vestir a camisa’, vai valer a pena”. Pois afirmo: nenhum prêmio ou reconhecimento que ganhei durante a minha curta carreira valeu qualquer hora longe das pessoas que eu amo ou valeu a negligência comigo mesma. Já fui parar no hospital algumas vezes por conta de estresse, já perdi muitas horas de sono em vão, já abdiquei de muitas coisas que me eram caras porque “precisavam de mim”.

O discurso do medo

Sei que meu quase triste caso está longe de ser o único. Não dá para contar nas mãos o número de histórias que conheço de gente que foi internada, ficou gravemente doente porque demorou a procurar ajuda médica por “não ter tempo”; gente que perdeu casamentos de pessoas queridas, aniversários, enterros, nascimentos; gente que deixou aquele tão sonhado curso, aquela tão sonhada viagem para depois e o tal depois custa a chegar; gente que perdeu amores, abusou de bebida, de droga. Tudo isso porque estamos? – nós, jornalistas – inseridos numa insana prática diária que fica escondida por trás das linhas que escrevemos.

Há um pacto silencioso e burro que nos submete a condições que por vezes podem beirar o subumano, somos complacentes quando colegas sofrem assédio da chefia e apenas levantamos uma voz rouca quando um de nós é atingido pelo público. Meus caros, o inimigo, aqui, somos nós mesmos.

As empresas de jornalismo, hoje, têm um discurso que é incutido diariamente em nós, que diz “você é um jornalista melhor porque você trabalha aqui”, “em nenhum outro lugar você vai ter a autonomia que você tem aqui”, “esse tipo de trabalho que você faz é muito alinhado com o nosso, nenhum outro lugar vai te valorizar tanto”. Esse discurso do medo vai nos minando a cada dia até chegarmos ao ponto em que não acreditamos mais em nós mesmos, e nos resignamos.

Posso citar vários casos de pessoas que entraram nessa lógica? – eu mesma já estive deste lado – e que se anulam diariamente em empregos por elas odiados porque “não vou encontrar nada melhor”. Se você pensa assim, é porque você caiu no canto da sereia.

Momento de reavaliar

Por outro lado, posso citar vários casos? – e experiências próprias ?– de gente que rompeu com essa lógica e hoje leva a vida que quer ou o mais próximo possível disso. Não são loucos, não passam fome e nem acumularam dívidas: são pessoas que têm oito horas de sono, menos rugas e gastrite, estão mais próximos da família e dos amigos e conseguiram (a muito custo, é verdade) focar no que é importante.

Porque no final do dia o que importa não são as oito horas que você passou dormindo ou as oito horas que você passou trabalhando (se você trabalha mais do que isso, já passou da hora de rever suas prioridades), mas o que você faz com as outras oito horas sagradas do seu dia, que devem ser exclusivamente suas. Parece discurso utópico, mas não é. Todo esse tempo que você perde sem se dedicar a você e aos seus não volta, cara pálida.

Os passaralhos vão e vêm, e não perdoam ninguém. E quando ele chega, o sentimento que fica é um misto de “valeu a pena” com “que trouxa que eu fui por dedicar tanto tempo da minha vida a girar uma roda que só engole gente, gera lucro e fama para poucos em detrimento do esforço individual e sacrifício pessoal de muitos”.

Não vou nem entrar na discussão sobre o mito do heroi entre os jornalistas. Um spoiler: não somos. No máximo, herois são os nossos personagens. E só.

A Folha – a mesma que protagonizou um dos últimos passaralhos – publicou uma história incrível sobre um porteiro sedento e voraz pelo saber. Do lixo do prédio em que trabalha, ele resgata obras de literatura e disse: “Depois que você lê Machado [de Assis], nunca mais é humilhado. Machado me mostrou toda a hipocrisia do mundo.”

Quem sabe é a hora de ouvirmos um de nossos personagens e refletir sobre o nosso ofício de modo que estejam na balança as perdas e os ganhos, as conquistas e as abdicações, e se a balança pender pra um lado só, é momento de reavaliar.

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Luiza Bodenmüller é jornalista