Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O ano anunciado e o ano noticiado

Pensar em retrospectiva pode significar tanto o risco de sobrevalorizar o indevido quanto o de supervalorizar o insignificante. Olhando para tudo o que se noticiou e para tudo o que se anunciou em 2014, será que o mais relevante foi devidamente noticiado? E, se isso não ocorreu, não terá sido por falta de anúncio?

Desde o longínquo janeiro, anunciava-se prioritariamente a Copa do Mundo e as eleições de outubro como os catalisadores da atenção pública no ano, o que se confirmou mesmo que, a despeito da precipitação de muitas previsões e análises, fossem realizadas à queima roupa. Deixava-se de perceber uma pauta oculta na imprensa: a crise de abastecimento de água, que crescia silenciosamente sob a tragédia envolvendo Eduardo Campos, o “risco” de Marina Silva vencer as eleições e os fragorosos 7×1 aplicados na mais apática de todas as seleções brasileiras de futebol de todos os tempos.

E, enquanto os anúncios e previsões esportivas e políticas naufragavam, a água escasseava no maior centro urbano do país. Noticiada sem anúncio prévio, evidenciando que o país apto a sediar um dos maiores eventos esportivos do mundo não estava apto na mesma proporção a fornecer água potável para a sua população. Pelo menos não na mesma intensidade ou com o mesmo interesse político.

Àqueles que se preocupavam com o rumor do “não vai ter Copa”, ofereceram-se céleres providências, inclusive a famigerada Lei de Segurança Nacional, além de se subsidiar com recursos públicos o que fora incialmente anunciado como investimento privado e mobilizar o aparato de Estado para combater o movimento de descontentes iniciado em junho de 2013, que parecia consistir uma ameaça aos planos da festa envolvendo a maior paixão nacional. Festa que, mesmo tímida e superestimada como fonte de receita, transcorreu sem maiores transtornos. Foi quando ficou mais uma vez claro que o poder público é seletivamente eficaz. Que é muito bom em iniciativas de controle civil, mas escasso em atender necessidades elementares pertinentes ao interesse público. Como a água, por exemplo.

Desmatamento e megaprojetos

E veio a Copa. E vieram os alemães. E o slogan do ônibus que transportava a seleção, “Preparem-se, o hexa está chegando!”, revelou-se apenas uma reedição de um delírio megalomaníaco que acomete regularmente tanto a seleção quanto outros setores da sociedade. Com o fim da expectativa pelo hexa frustrado, as eleições rapidamente tomaram conta da atenção nacional.

Após a trágica morte de Eduardo Campos e a ascensão da candidatura de Marina Silva, ninguém mais sabia o que predizer sobre o pleito. Antecipando-se a qualquer possibilidade, iniciou-se a campanha. A primeira na qual as redes sociais mostrariam efetivamente seu poder de fogo. E ele veio com tudo, de todos os lados. Delegou-se ainda mais às pessoas individualmente a tarefa do convencimento, com o suporte de iniciativas de informação talhadas para o enfrentamento político. E fez-se a guerra. E dela, os vencedores, como é muito bem sabido.

Nesse transcorrer, a crise da água em São Paulo agravando-se cada vez mais, parecendo um mero problema local de estiagem, logo revelado como efeito de uma política ambiental equivocada, em um ano que, com muito anúncio mas pouca notícia, o Brasil bateu recordes impressionantes de desmatamento na Amazônia, de onde principia a evaporação que regularmente rega com chuvas boa parte do território brasileiro.

Que a Amazônia se encontra praticamente em uma região alienígena do país já não há maiores dúvidas. Mas a atenção negligente do jornalismo para o que lá acontece favorece a desatenção política e o pouquíssimo engajamento público com o tema. À população que lá vive, ribeirinhos e indígenas, resta virar-se com o que lhes está disponível. Tem sido pouco para a própria sobrevivência, para ter de conviver com os efeitos do desmatamento, frear a violência em torno da posse da terra e dos megaprojetos energéticos governamentais, envoltos na neblina da irregularidade, a mesma que parece ser, às vezes, a única atmosfera possível quando se trata das relações entre o poder público e as empresas que “constroem” o Brasil, as bem conhecidas empreiteiras.

A última pauta oculta

Mais noticiada que a questão ambiental, mas talvez não tanto quanto os graves “problemas” da seleção de futebol, a questão econômica também foi vítima das fatalidades jamais anunciadas, como a perspectiva da estagnação do PIB e outras “fatalidades”. A própria Copa do Mundo, tida previamente como solução econômica, resultou em grandes prejuízos, segundo o próprio Ministério da Fazenda. Nas cidades-sede, suas obras, licitadas e empreitadas, encontram-se em sua maioria a meio caminho e talvez não saiam disso. As pessoas removidas para que elas fossem iniciadas, entretanto, não ficaram no mesmo meio caminho. Foram mais longe em direção às periferias, distantes dos torcedores estrangeiros e, muitas vezes, do jornalismo fotográfico também.

O cenário completa-se com os dados da economia, nem um pouco animadores no fim do ano, quando se pensa claramente em um cenário de recessão econômica, ajuste fiscal severo e um prazo indeterminado de cinto apertado. Depois de sucessivos anos de estímulo ao consumo e de gerações de pessoas acostumadas a usar o crédito para adquirir bens de consumo pouco duráveis, é de pensar em como elas se comportarão diante da previsível obsolescência programada, do crédito já empenhado e da frustração do impedimento econômico ao consumo.

Essa também é uma perspectiva que poderia muito bem ser considerada uma pauta oculta, não fosse já verificada nos números das vendas deste Natal. Mas as festas de fim de ano aí estão. O certo talvez seja deixá-las passar – aproveitando-as na medida do possível – para aí, então, conferir o saldo final da conta de 2014 e então projetar 2015.

Que uns brindem com a champanhe que nunca lhes faltou. Muitos outros só esperam que não lhes falte apenas água e outros ainda que se mantenha o direito de nela banhar-se. Parece enigmático? É que aqui também há uma última pauta oculta, talvez a mais invisível de todas: os povos indígenas, que lutam impavidamente por continuar a viver no Xingu, no Tapajós e pela demarcação territorial em todo o país. Talvez, se a realidade for noticiada em tempo hábil, a possibilidade de tragédias já anunciadas e para lá de previsíveis, como o morticínio de pessoas, sejam evitadas a tempo, resultando em um ano novo, aí sim, com as muito bem vindas boas notícias.

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Lucio Carvalho é coordenador-geral da Inclusive: inclusão e cidadania e autor de Morphopolis