Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O enterro antes do parto

A presidente Dilma Rousseff anunciou os principais ministros econômicos de seu segundo mandato e eles falaram sobre as linhas gerais de sua política, diferente da seguida nos últimos quatro anos. O foco da imprensa, em condições normais, estaria voltado para 2015 e, talvez, para os anos seguintes. Repórteres e colunistas, agora, estariam concentrados na caça de informações sobre o futuro dos impostos, do gasto público e da estratégia de crescimento. O fim do primeiro mandato seria assunto secundário. Mas as condições estão longe da normalidade.

Neste cenário especial, o noticiário tem evoluído em dois tempos diferentes: o de um novo período, com novas promessas, e o de um governo difícil de fechar, mesmo faltando menos de um mês para seu encerramento oficial. A Petrobras atrasou a publicação do balanço do terceiro trimestre. A empresa auditora, a PwC, recusou assiná-lo antes de mais esclarecimentos sobre as denúncias da Operação Lava Jato. Mas a Petrobras é só uma parte do quadro. Também a administração federal tem tido problemas para encerrar suas contas e abrir um novo livro.

Três grandes temas dominaram a cobertura no começo de dezembro – o escândalo da Petrobras, com seus possíveis efeitos políticos e econômicos, a arrumação das contas do primeiro mandato e, finalmente, a preparação das políticas para os próximos quatro anos (ou, no mínimo, para um ajuste inicial).

Receitas e despesas

Na quinta-feira (4/12), a notícia mais importante, num cenário mais normal, seria o novo aperto da política monetária, Na véspera, os dirigentes do Banco Central (BC) haviam elevado os juros básicos de 11,25% para 11,75%. A alta de 0,5 ponto porcentual bastaria, sem qualquer comentário, para indicar uma preocupação maior com as pressões inflacionárias. Na reunião anterior, o aumento havia sido de 0,25 ponto.

Mas o principal destaque na imprensa foi, mais uma vez, a Operação Lava Jato. Os três maiores jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo deram manchetes muito parecidas. O Globo publicou: “Propina virou doação oficial do PT, diz delator”. Os títulos principais do Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo foram na mesma linha.

Os três noticiaram a elevação da taxa básica, a Selic, no alto de página, em uma coluna. Também apresentaram na capa o impasse da votação, no Congresso, de um projeto de mudança da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) deste ano. Aprovado o projeto, o governo seria autorizado a descumprir a meta fiscal de 2014. Além disso, seria afastado, ou reduzido, o risco de um processo por crime de responsabilidade.

Os jornais debulharam com eficiência os aspectos financeiros do projeto, desde sua apresentação. Também acompanharam as manobras da base governista para pressionar a presidente e conquistar vantagens. O principal objetivo, como ficou claro desde os primeiros dias, era a conquista de postos importantes na reorganização do governo.

Mas faltou um pouco mais de cuidado com um ponto essencial. Oposicionistas mais de uma vez qualificaram o projeto como tentativa de disfarçar, ou de anular, um crime de responsabilidade. Mas haveria base legal, de fato, para um processo desse tipo? Faltou explorar com mais cuidado a Lei de Responsabilidade Fiscal. Faltou buscar mais esclarecimentos com juristas. Se fosse possível uma condenação por crime de responsabilidade, qual seria a consequência?

Explorar mais amplamente esse tema daria aos leitores uma visão mais clara da importância política do jogo. O descumprimento da LDO e da Lei de Responsabilidade Fiscal poderia “resultar em punições aos gestores da política econômica e à própria presidente da República”, segundo o Globo. A mesma afirmação apareceu na Folha, com a igual parcimônia, O senador Aécio Neves, em discurso, acusou os aliados do Planalto de “tentar anistiar Dilma do crime de responsabilidade”, registrou o Estadão.

Informações como essas devem ter servido apenas para estimular o apetite dos leitores. Mesmo com o risco de repetição, a referência mais precisa às possíveis consequências de um processo teria enorme importância informativa.

Mas a arrumação final das contas do governo, incluída a legalização do resultado fiscal, envolveria ainda outras complicações. A mais intrigante foi o aproveitamento de sobras do Tesouro para o pagamento de despesas obrigatórias. As primeiras notícias distribuídas por agências deixaram muitas dúvidas, até porque incluíam a palavra “superávit”. Que superávit?

O Estadão publicou uma boa explicação na página 5 do caderno de Economia. O Valor deu manchete com o assunto. A presidente havia mudado, por medida provisória, a regra de aproveitamento de sobras de caixa do exercício anterior. Nem sempre o governo desembolsa todo o dinheiro arrecadado e isso resulta num impropriamente chamado superávit do Tesouro.

No caso de taxas e contribuições, as sobras só poderiam ser usadas para as aplicações previstas originalmente. A MP 661 eliminou essa vinculação e permitiu ao governo destiná-lo principalmente, neste ano, à cobertura de gastos da Previdência, com estouro de R$ 8 bilhões, segundo a revisão de receitas e despesas do quinto bimestre. Detalhe especialmente interessante, no material do Estadão, foi o comentário atribuído ao economista José Roberto Afonso, da FGV-Rio: “Fizeram uma DRU (desvinculação de receitas da União), que antes dependia de emenda constitucional, por medida provisória”.

História cômica

Um terceiro lance, autorizado pela mesma MP, foi a liberação de mais R$ 30 bilhões do Tesouro para o BNDES. Um empréstimo de igual valor havia sido autorizado no meio do ano. Para custear cada um desses empréstimos – e muitos outros concedidos nos últimos cinco anos – o governo emitiu títulos públicos, isto é, aumentou sua dívida bruta.

Logo depois de ser apresentado como futuro ministro da Fazenda, o economista Joaquim Levy havia anunciado a intenção de eliminar ou reduzir as transferências de recursos fiscais para os bancos públicos. Na corrida para fechar as contas do ano, a presidente autorizou um último repasse antes da posse ministerial. Segundo o Estadão, foi um lance de um jogo combinado, como se o Executivo estivesse fazendo uma limpeza do estoque da era Mantega. Na versão atribuída ao senador Romero Jucá (PMDB-RR) a história tornou-se cômica: “É o inverso do que disse o ministro Levy. Mas ele ainda não assumiu”.

Em outras palavras: o futuro deve ser diferente, mas o enterro do presente continua muito trabalhoso.

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Rolf Kuntz é jornalista