Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O mercado de filmes

O filme O Mercado de Notícias é um manifesto crítico do jornalismo. Não de amor e nem de ódio, mas um convite à reflexão. Se a metáfora fosse o casamento, seria uma DR (discussão sobre a relação). Teve ótima recepção nos jornais.

O diretor Jorge Furtado criou a obra como um “dispositivo de filmagem”: reúne um grupo de atores em local fechado para montar uma peça pouco conhecida do escritor britânico Ben Jonson (1572-1637), que tem o nome do filme. Começa o documentário na primeira reunião do diretor com os atores, ele explica o texto e o projeto do filme, eles fazem a primeira leitura. As cenas seguintes mostram o elenco a experimentar roupas, a evolução dos ensaios, depois a cenografia sendo preparada até uma plena execução do texto em palco montado no mesmo espaço fechado. Desde o início do filme, trechos do texto renascentista dão oportunidade de cortes para cenas de entrevistas com alguns jornalistas escolhidos pelo diretor para falar do jornalismo brasileiro contemporâneo.

A peça, escrita no início do século 17, trata criticamente a gênese do jornalismo empresarial, em que a edição das notícias passa a objetivar lucro. É um retrato do surgimento de um modelo econômico que evolui até se tornar pleno nos Estados Unidos, a partir de meados do século 19, quando jornais baixam seus preços de capa para atingir grande número de consumidores, criando um público cativo para um mercado anunciante que paga a conta dos principais custos de produção da fábrica de notícias. O jornal se torna então o primeiro meio de comunicação de massas, ao mesmo tempo que os jornalistas se proletarizam.

Os jornalistas entrevistados são escolhidos pelo diretor, arbitrariamente, entre aqueles de que ele gosta, como explica logo de início: Bob Fernandes, Cristiana Lobo, Fernando Rodrigues, Geneton Moraes Neto, Janio de Freitas, José Roberto Toledo, Leandro Fortes, Luis Nassif, Mauricio Dias, Mino Carta, Paulo Moreira Leite, Raimundo Pereira, Renata Lo Prete (em ordem alfabética). É um grupo pluralista, em que predominam apoiadores da atual administração federal.

No filme, os entrevistados comentam principalmente a conjuntura atual da mídia brasileira. Exceções são momentos como aquele em que Raimundo Pereira fala de aspectos estruturais da indústria jornalística (ele chama de “jornal burguês”), que, mesmo ressalvando não gostar “da burguesia”, entende ser a melhor representação do noticiário, porque feito por um conjunto parrudo de profissionais. A ideia é corroborada por José Roberto Toledo, para quem o processo de produção coletivo estabelece múltiplos filtros e tende a garantir maior qualidade na cobertura (embora “nem sempre”, como adverte).

Além da peça e dos depoimentos, o filme aponta casos que o diretor elege como erros ou coberturas defeituosas da imprensa brasileira, sobre os quais ele faz como que pequenas reportagens. Furtado se revela um repórter convincente.

Narração em detalhes

Duas histórias são mais minuciosas. A primeira é o caso do objeto que atingiu a cabeça do candidato José Serra em um evento de campanha no Rio de Janeiro em 2010. Na época, vários órgãos de imprensa noticiaram que ele havia sido vítima de agressão durante um confronto com militantes petistas que procuravam impedir a caminhada do candidato e apoiadores por uma área comercial de Campo Grande, no Rio.

Serra procurou atendimento médico à noite; submetido a uma ressonância magnética, repousou e deixou a clínica sem nenhuma sequela. No dia seguinte, em entrevista durante evento oficial da Presidência, o presidente Lula acusou o oposicionista de ter sido atingido apenas por uma bolinha de papel e forjado um ferimento “como o goleiro chileno Rojas”. Desde então, as duas versões convivem mais ou menos conforme o alinhamento político de quem as dissemina, mas uma pesquisa na internet revela que a versão de Lula se tornou dominante.

Furtado vai fundo para destrinchar o caso porque, segundo ele, a imprensa não analisou o episódio. Munido de imagens produzidas por cinco câmeras de vídeo localizadas ao redor de José Serra, em ângulos diferentes (todas disponíveis na internet, afirma na narração), faz uma excelente reconstrução da cena de uma bolinha atingindo levemente a cabeça do candidato.

Trata-se de uma reportagem convincente. O espectador é levado a crer que a versão divulgada pelo presidente Lula, na solenidade oficial no dia seguinte ao episódio, é verossímil. O conjunto da apuração, no entanto, serve para mostrar como o filme comete um defeito comum na imprensa. Quem olha a árvore não consegue ver o bosque, diz o famoso adágio alemão citado por Ortega y Gasset em suas Meditações do Quixote (Livro Ibero-Americano, 1967). Jorge Furtado olhou tão detidamente a bolinha, por tantos ângulos, que não viu nem deixa seus espectadores verem que ao redor daquela cena, e principalmente nos minutos seguintes, à medida que o candidato deixa a marquise para fazer a caminhada que os oponentes querem impedir, ocorre uma batalha campal. Pedras e outros objetos voaram em torno da comitiva, uma repórter foi ferida, lojas fecharam as portas. Alguns minutos depois uma coisa mais pesada atingiu o candidato, que entra em uma van e espera a tempestade de objetos passar. As cenas também estão na internet. Mas nada disso aparece no filme. Furtado focou a árvore e omitiu o bosque.

Em outra reportagem, o filme narra um episódio que, visto com a distância de dez anos, parece a um tempo hilariante (os jornalistas entrevistados gargalham ao ouvirem a história) e grave por não ter sido corrigido à época. Trata-se de uma grande chamada de primeira página da Folha de S.Paulo em 2004 que dizia que um quadro de Pablo Picasso decorava um escritório da burocracia do INSS, em Brasília.

Segundo narra o diretor, logo ao ver a reportagem ele se lembrou ser muito semelhante ao quadro Mulher de Branco, que está exposto no museu Guggenheim, em Nova York. Furtado analisa fotos do original e da peça no INSS para concluir com certeza que se trata de uma reprodução. Alertou o ombudsman do jornal. Nada aconteceu.

O cineasta volta ao tema, vai ao museu de Nova York, à sede do INSS, prova sem sombra de dúvida que emoldurado na repartição de Brasília está um simples pôster. Os jornalistas entrevistados se divertem com a “barriga”. Um promete que, depois do filme pronto, vai investigar por quanto o INSS aceitou a reprodução barata. Alguém diz que a reportagem tem um preconceito implícito (o governo de um operário não sabe cuidar de um Picasso).

Lendo a reportagem da Folha de 7/3/2004, vê-se que não há nenhuma ironia, nem mesmo o governo Lula é apontado como responsável por qualquer coisa relacionada à obra. Tampouco há referência a prejuízos ao erário por incorporar um pôster como sendo obra original de Pablo Picasso. A reportagem é induzida a erro por um historiador da arte e a repórter, sem a mesma formação em artes plásticas que Furtado, engole a história. O filme termina mantendo abertas várias das dúvidas que o cineasta acusa a imprensa de ter deixado antes: quem confundiu o pôster com um original de Picasso, qual o valor atribuído ao papel impresso no tombo do governo? Depois de revelado o engano, o que seria feito com a reprodução? Nada, a história termina sem fim.

Erro grosseiro

Há uma terceira narração de um erro grosseiro da imprensa, que até hoje passa como o maior da história: o caso da Escola de Base, em que uma acusação falsa de abuso sexual de crianças provocou uma onda histérica, a destruição do prédio de uma escola e da reputação de seus proprietários. Não há uma reportagem mais detida sobre o episódio, apenas a reprodução de artigos da própria imprensa.

Furtado tampouco explora algo que poderia ser a chave para uma melhor compreensão do jornalismo: um grande jornal paulistano jamais embarcou na história errada. Uma análise de como o Diário Popular percebeu desde o primeiro dia que tudo cheirava a equívoco poderia ensinar muito sobre comportamentos errados e certos da imprensa. Mas forçaria também a admissão de que o erro do resto da imprensa não foi por razões essenciais à atividade dos jornais mas por questões episódicas. E de que o erro não ocorreu por alguma decorrência de comportamento classista da “imprensa burguesa”, pois tanto jornais que erraram quanto o que acertou tinham os mesmos perfis sociais, de donos e empregados.

Olhar crítico

Das muitas declarações disparadas pelos entrevistados, duas de Paulo Moreira Leite chamam atenção pela aparente radicalidade: primeiro, ele alega que a imprensa brasileira tem uma visão econômica extremamente conservadora, para quem mesmo o estado de bem-estar social é inaceitável; depois, diz que a discussão sobre a influência da publicidade oficial para sustentar a imprensa chapa branca só foi lançada pela imprensa conservadora depois que Lula foi eleito presidente e aumentou investimentos em veículos favoráveis ao governo.

As duas opiniões não resistem a uma pesquisa simples na internet. Os jornais brasileiros não defendem ideias ultraliberais como as do citado austríaco Friederich Hayek; ao contrário, cobram aprimoramentos em benefícios sociais e frequentemente apoiam o papel do Estado como indutor e coordenador de políticas econômicas. Quanto à influência da publicidade estatal sobre a imprensa, foi tema de campanha publicitária da Folha de S.Paulo (“Rabo preso”) já nos anos 1980, logo após a redemocratização. O mesmo discurso se acentuou quando o presidente Collor (1990-1992) cortou a publicidade do governo federal no jornal por sua cobertura crítica. Naquele momento, a Folha se vangloriou de poder manter sua linha editorial sem preocupação com a retaliação oficial porque os anúncios públicos correspondiam a menos de 5% de suas receitas (os federais eram uma fração).

Um olhar crítico não pode deixar de mencionar que vários dos entrevistados trabalham para órgãos de imprensa dependentes de anúncios públicos. Não lhes foi feita a pergunta imperiosa: existe relação entre suas opiniões favoráveis ao governo federal e a publicidade oficial nos veículos em que trabalham?

Secos e molhados

O roteiro deixa passar duas oportunidades interessantes de aprofundamento de temas levantados no filme por declarações do experiente jornalista Luis Nassif. A primeira é quando ele alega que o sensacionalismo foi introduzido no Brasil, com um modelo americano, pela Veja, nos anos 1960. O fundador da revista, Mino Carta, é outro entrevistado. Seria proveitoso confrontar a visão dos dois sobre o desenvolvimento da revista e da imprensa até chegar ao que criticam hoje. Há uma extensa bibliografia sobre o assunto no país, que começa no império. O Sensacionalismo (1931), de Carlos Sussekind de Mendonça, cita ensaio de 1888. Nassif tem uma longa história de embate com a semanal da editora Abril; como no adágio alemão, obcecado pela árvore, não viu a antiga floresta.

Mas talvez o momento crítico mais intenso que o filme deixa passar seja aquele em que o mesmo Nassif afirma que a cobertura do impeachment do presidente Fernando Collor foi marcada pelo “pior jornalismo até então”, cheia de equívocos. A declaração significa que a cobertura que levou à queda do primeiro presidente eleito do país depois da ditadura militar foi baseada em defeitos? Se isso é verdade, é necessário refazer a historiografia do período, pois a opinião pública brasileira desconhece isso. Se houve realmente uma sucessão de equívocos, o filme deveria dar mais espaço ao jornalista para explicar o que o espectador, majoritariamente, não sabe: quais foram os erros naquela cobertura?

Além de cobrar mais profundidade do entrevistado, nesse episódio o filme poderia ter “confrontado versões”, o que Mino Carta em outro momento diz ser tarefa essencial do jornalismo. A ideia de que Collor foi vítima de mau jornalismo se choca com o que é dito por vários entrevistados sobre a cobertura do governo Lula. Afinal, por que a imprensa foi crítica a Collor se ele não era barbudo (conforme a explicação de Mino Carta); se ele tinha um modelo econômico liberal (Paulo Moreira Leite diz que a imprensa critica o governo Lula por ser economicamente ultraconservadora); se Collor era um membro da elite (Bob Fernandes diz que os jornais atacam os petistas porque eles não são “do clube”); mais do que isso, se ele era dono de um conglomerado jornalístico “burguês” (para usar expressão de Raimundo Pereira), sócio de Roberto Marinho (o maior magnata da imprensa à época) e não havia qualquer diferença social que pudesse justificar uma “luta de classes” (que Janio de Freitas vê no embate entre a grande imprensa e Lula).

O filme não faz o confronto de versões e de memória. Se fizesse, diretor e entrevistados talvez tivessem que admitir que o jornalismo brasileiro apenas cumpre o destino prescrito por Millôr Fernandes, citado no filme: “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”.

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Leão Serva é jornalista