Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As grandezas e as contradições de um revolucionário

“Cavaleiro da Esperança”. Relembrando um herói militar da época da Revolução Francesa, esta foi a alcunha que lhe deu Isidoro Dias Lopes, em 1927. Já numa paródia radiofônica de 1947, cantada pela dupla Alvarenga e Ranchinho, ele foi descrito como “Pirata da perna de pau, do olho de vidro e da cara de mau”. Alterações tão radicais no cognome já são reveladoras da sinuosa trajetória de Luis Carlos Prestes – talvez a mais polêmica e de mais difícil reconstituição da história brasileira. Excetuando pouco menos de dois anos, nos quais foi senador pelo PCB, foram 92 anos vividos na maior parte do tempo na prisão, no exílio ou na clandestinidade, sempre falseando, destruindo ou apagando as pistas de suas passagens pelos mais diversos países. De herói militar da Coluna e das lutas tenentistas à liderança inconteste dos comunistas brasileiros, a memória popular brasileira em relação a Prestes oscilou de um ponto a outro, quase sempre do céu ao inferno, consagrando-lhe um maniqueísmo raro, excludente e sempre apaixonado.

Sensível a estas dificuldades, o historiador Daniel Aarão Reis, em Luís Carlos Prestes: Um Revolucionário Entre Dois Mundos, nos brinda com uma biografia densa, fartamente documentada e extremamente ciosa em distinguir a realidade dos mitos criados em torno de Prestes. De uma escrita saborosa, convincente nos detalhes e sedutora no conjunto, a narrativa é, contudo, rigorosamente cronológica: acompanha a trajetória do líder comunista desde as revoltas tenentistas da década de 1920 até sua morte em 1990. Mas dada a singularidade do personagem, cuja vida pessoal foi constantemente soterrada pelas demandas de uma vida publica avassaladora, o foco se desvia bastante da vida privada e familiar de Prestes, transformando-se numa detalhada história das oposições de esquerda no Brasil.

Sem aquelas que ele próprio designava como “sua constelação feminina” – sua mãe, Leocádia e suas irmãs; suas mulheres, Olga Benário e Maria Prestes e, depois, sua filha Anita –, que partilharam de uma vida de escassez e privações, dificilmente ele teria sobrevivido ao inferno das prisões e ao sofrimento da clandestinidade. Até o final da vida, manteria na sua cabeceira, os retratos de sua mãe, de Olga e de Lenin – sempre nesta ordem hierárquica. Foi vilipendiado quando chegou a conversar com Vargas ao final do período do Estado Novo – o mesmo que fora responsável pela infâmia de entregar sua primeira esposa, grávida de sete meses, aos nazistas. Como militar constituiu exemplo de conduta, de disciplina e de tenacidade, possibilitando sua rápida ascensão e prestígio entre seus colegas de caserna. Prestes converteu-se ao comunismo exatamente numa época na qual a ideologia desfrutava de uma ascensão notável, plena de um otimismo revolucionário e de um voluntarismo ansioso e inflexível na crença de que o mundo marchava inevitavelmente para o socialismo – e o sonho de uma sociedade igualitária se afigurava como aquele pote de ouro no fim do arco-íris.

Último comunista

Aarão descreve em detalhes as sucessivas derrotas dos comunistas brasileiros e, sobretudo, a forma desassombrada e inabalável de Prestes enfrentar todas as adversidades – mesmo quando ele sofria na pele, juntamente com sua família, as perversidades dos muitos exílios soviéticos. “Prestes viveu e morreu dando cabeçadas. Mas com todas as suas convicções”, escreve o historiador –, pois, nunca duvidou que a revolução socialista fosse uma necessidade histórica. Duro na queda, o líder comunista demorou muito para capacitar-se (se é que algum dia o conseguiu) de traquejo e habilidades necessárias para a mínima sobrevivência no quadro político brasileiro, como sempre permeado pelo oba-oba dos oportunismos e das alianças espúrias. Na história brasileira, talvez ele tenha se constituído na antítese escancarada da figura de Getúlio Vargas, o mestre calculista da maleabilidade política e dos tapinhas nas costas. Prestes acreditou, na teoria e na prática, num comunismo espartano, despojado, quase ascético e sempre inflexível – o que o condenou, não raro, ao isolamento e à resignação.

Sua doutrina marxista-leninista, sem concessões (mas também, sem nenhuma densidade teórica, diziam seus detratores), se transformou numa espécie de arma para que, a longo prazo, ele pudesse manter uma atitude de inconformismo em relação aos poderes vigentes. “O compromisso moral já não tem mais nenhum valor”, declarou em 1982, ao tecer críticas a Lula e ao PT. Na sua longa trajetória de militância raramente se percebeu quaisquer vislumbres de expressão ligeira ou mais descontraída Foi apenas numa ocasião, em 1983, num almoço familiar, que Prestes surpreendeu a todos com uma fala prosaica, surpreendentemente premonitória. “Um dia, quando a humanidade construir uma sociedade igualitária, todos terão liberdade para fazer qualquer coisa. Quem quiser fumar maconha, vai fumar. Homem que quiser casar com homem vai casar. Quem desejar morar em outro planeta, vai morar… sem repressão religiosa, policial, ditatorial ou política. Nesta época, a humanidade estará livre dos preconceitos que infernizam sua trajetória. Quem sabe sou o último comunista do Brasil. Os que são frouxos que abram mão dos seus ideais” – declarou – e retirando-se do recinto, saiu assoviando sua canção preferida, o Hino à Bandeira.

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Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor de, entre outros, Raízes do Riso