Quando começou a pesquisa para “Quem samba tem alegria” (Civilização Brasileira), biografia de Assis Valente que chega agora às livrarias, o jornalista Gonçalo Junior se preparou para contar a história do autor de clássicos como “Brasil pandeiro” e “Camisa listada” como um personagem que vivia atormentado pela homossexualidade. Preparou pesquisa volumosa para contextualizar o tema no Rio machista dos anos 1930, 1940 e 1950. Chegou a ter 60 páginas. Nada disso está no livro.
– Deletei tudo – conta o autor. – Quanto mais pesquisava, mais aquela ideia parecia deslocada. A homossexualidade não bate com a vida de Assis Valente. Pode ser que apareça alguém que fale “eu transei com Assis”. Mas não encontrei ninguém que pudesse dizer que ele era homossexual. Mesmo a primeira biografia dele (“A jovialidade trágica de José Assis Valente”, de Francisco Duarte Silva e Dulcinéa Nunes Gomes) apenas tenta alimentar de uma forma disfarçada que Assis era homossexual. Há depoimentos de seu sócio sobre relações dele com mulheres. Muitas músicas têm nome de mulher, com letras maliciosas. A paixão dele por Carmem Miranda era carnal. O único artigo feito sobre sua homossexualidade foi publicado nos anos 1970, a partir de canções em que ele mostrava uma perspectiva feminina. Não há nada antes disso.
Apesar de nunca provada, a tese da homossexualidade tem sido usada há décadas para se compreender a vida atribulada de Assis Valente. Uma trajetória que inclui, ao lado de sambas e marchas alegres, cinco tentativas de suicídio antes da definitiva, em 11 de março de 1958, quando ele bebeu a mistura de veneno de rato e guaraná. Os “enigmas” do compositor – como Nei Lopes define na orelha do livro – começaram a clarear para Gonçalo quando ele chegou à maior revelação do livro: o vício de Assis Valente em cocaína.
– Vamos pensar a cocaína ocupando o lugar da homossexualidade para explicar a angústia de Assis Valente – propõe Gonçalo Junior. – Pouco tempo após tentar o suicídio se atirando do Corcovado (em 1941), há um diálogo entre ele e Russo do Pandeiro no qual Assis fala “você sabe muito bem por que fiz isso”. Essas palavras são usadas normalmente como indício de que Assis estaria se referindo à sua homossexualidade, quando na verdade acredito que fosse à cocaína, que marcou a vida dele de 1939 a 1958. Em um dos bilhetes de suicídio, ele diz que a mulher não o compreendia. Difícil pensar que no Brasil dos anos 1940 ele cobrasse que a mulher o compreendesse por ser homossexual. Mas não é absurdo que ele esperasse que ela entenderia sua condição de viciado em drogas.
O depoimento de Sausa Duarte Machado (o compositor pagou os estudos dela e de seus irmãos e foi padrinho de seu filho) foi fundamental para cravar a certeza de Gonçalo sobre a sexualidade de Valente.
– Foi a última entrevista do livro, foi muito difícil localizá-la. Suas palavras reforçaram essa ideia. Porque ela era quem melhor poderia falar sobre Assis, pela intimidade que tiveram. Ela conviveu com ele praticamente em período integral nos últimos 13 anos de vida dele – explica Gonçalo. – Contou que Assis era apaixonado pela mãe dela, o que o levou a se dedicar tanto a ela e aos irmãos. Na biografia anterior, isso é entendido como paixão de Assis pelo irmão da garota.
“Quem samba tem alegria” – o título, retrato de uma vida amargurada, carrega boa dose de ironia (“Cheguei a pensar em outros versos da mesma música, como ‘salve o prazer’, mas esse nome num livro sobre Assis Valente pareceria um manifesto gay”, brinca o autor) – trata de uma história que é muito maior que a questão da droga ou da sexualidade do personagem.
Vaidoso e marqueteiro
Com um esforço de contextualização histórica em temas como o mecanismo da indústria da música no período ou os outros ramos de atividade do compositor (que foi também protético e cartunista), ele traça o perfil de um personagem vaidoso.
– Ele guardava cuidadosamente, por décadas, as reportagens nas quais era citado. Achou-se que era um arquivo completo, mas descobri que ele fazia isso apenas com as reportagens positivas – conta Gonçalo. – Ele era marqueteiro também. Andava com fotos suas no bolso para distribuir, pagava para imprimir folhetos com seu rosto para divulgar suas músicas, com as letras. Era um caso raro de compositor que fazia isso, investir na imagem dessa forma, algo que só os cantores faziam. Ali começaram seus problemas, aliás. Atitudes como essa e sua proximidade com Carmen Miranda acabaram gerando antipatia no meio musical. Ele não conseguia se enturmar. Isolou-se e se tornou refém de Carmen e do Bando da Lua sem saber. Os colegas diziam que ele pagava programadores para tocar suas músicas, o que ele desmentiu diversas vezes.
Gonçalo divide a vida do autor de “Fez bobagem” em duas partes. A primeira vai até 1939, quando Valente esteve próximo de Carmen. A segunda descreve sua vida a partir de 1941, quando sua depressão se aprofunda, o que o levaria ao suicídio (noticiado, em reportagem reproduzida no livro, como “Assis Valente conseguiu, afinal, o desejado colóquio com a morte…”).
– Nesse período ele vira quase um zumbi, passa a andar maltrapilho e a não cumprir o compromisso de entregar as dentaduras que tinha para fazer – detalha Gonçalo. – Eu me emocionei muito ao escrever o trecho final do livro. Não me vem à cabeça nenhum artista que tenha tido uma existência tão triste, de tamanha autodestruição.
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Leonardo Lichote, do Globo