Eu tinha 26 anos quando posei, um tanto nervoso, para a foto. Dois dias antes, um domingo, eu sintonizara o rádio numa emissora de Belém enquanto escrevia um texto para O Estado de S. Paulo, do qual era correspondente. Já percebi a história quando ela ia pelo meio. O que me chamou a atenção foi uma expressão muito familiar, tanto então quanto hoje: conflito de terra. Houvera tiroteio e choques armados num lugar chamado São Pedro da Água Branca, na zona de contestado entre o Pará e o Maranhão, no vale do rio Gurupi.
Era o tipo de história que não podia perder. Vivia-se em plena ditadura, mas, de forma paradoxal, a censura tolerava matérias mais fortes sobre a fronteira amazônica. Não havia hegemonia sobre a questão. Os próprios militares se dividiam na avaliação do que o governo federal estava fazendo na região, que tanta sensibilidade causava aos ideólogos castrenses. Era a maneira de falar do modelo econômico por uma das suas partes mais expressivas, evitando o corte drástico dos Torquemadas.
Como ainda não havia o Google (nem computadores acessíveis aos mortais), passei a manhã de segunda ao telefone atrás de informações sobre São Pedro. Fosse o que fosse, a localidade era desconhecida. Mas achei que valia a pena ir até lá. São Paulo aprovou a pauta que fiz. Consegui convencer Cláudio Leal, o diretor de redação de O Liberal, a ceder carro, motorista e fotógrafo. Garanti que voltaria com uma boa matéria.
Precisava dessa companhia por todos os motivos. Temendo deparar com muitos problemas, queria chegar ao local do conflito identificado como jornalista pelo carro do jornal. Mais dois companheiros de jornada também serviriam para inibir alguma atitude mais agressiva. E, naturalmente, contar com um fotógrafo me liberaria para o trabalho de repórter.
Pegamos a Belém-Brasília, ainda precária naquele ano de 1977. Perto da divisa com o Maranhão havia essa atração: o dono do lugar mantinha uma onça na corrente, atada a um poste de madeira, para posar para fotos se alguém quisesse se dispor a dar de mamar ao animal, saudável, de porte amedrontador. Felizmente topei descer do fusca. Foi um bom ensaio para o que viria.
A onça se comportou muito bem. Tomou todo o conteúdo da mamadeira sem ensaiar qualquer reação hostil. Eu torcia para que ela fosse gulosa, como era, imaginando se não podia se irritar ou querer cobrar mais alimento com uma patada. Como se pode constatar, havia corrente em extensão suficiente para ela investir contra mim. Enquanto as gotas saíam da mamadeira eu refazia uma pergunta que me fiz tantas vezes, antes e depois, nas incursões jornalísticas ao chamado hinterland: por que estou aqui?
PM vs. PM
Prosseguimos até Imperatriz, onde dormimos. Um oficial da Polícia Militar maranhense indicou onde ficava São Pedro – para ele, em domínios maranhenses. Apesar de o governo do Pará não concordar, foi por causa dessa convicção que o governo do Maranhão decidiu mandar uma tropa da PM para proteger os cidadãos maranhenses, que estavam sendo atacados por paraenses, desejos de se apossar de território gonçalvino.
De manhã cedo voltamos pela Belém-Brasília até a estrada que, a partir dela, seguia para Marabá. Era a PA-70, depois 150 e, agora, BR-222. No quilômetro 30 ia-se para a esquerda. Quando entramos no ramal os passageiros de uma camionete que vinha em sentido contrário nos pararam. Quem dirigia era Jackson de Mendonça, o maior grileiro da área, que eu já conhecia de (má) fama.
Ele apresentou seu acompanhante como um agente do SNI, o temido Serviço Nacional de Informações. Segundo o secreta, o povoado fora tomado por guerrilheiros, que estavam entricheirados na mata e atacavam quem ousasse entrar. Mostrou-me furos na camionete como provas de balas que tinham atirado. Nem a PM do Pará conseguira expulsar os guerrilheiros. Aconselhou que déssemos meia-volta. Estávamos correndo risco de morte.
Sou obrigado a admitir que o motorista e o fotógrafo se prontificaram de imediato a seguir o sábio conselho, mas, democraticamente, como chefe da expedição, decidi que prosseguiríamos. Os argumentos reforçavam a previsão que me fizera iniciar a viagem: tratava-se de assunto quente, capaz de render uma boa matéria. E fomos em frente.
O cenário não se apresentava dos mais auspiciosos. O terreno era ondulado e pedregoso. Impossível velocidade acima de 20/30 quilômetros. Mata fechada dos dois lados não permitia manobra rápida de fuga. Não uma estrada propriamente dita, apenas uma trilha rústica. Avançávamos tensos. Subitamente, uma árvore atravessada. O motorista foi rápido na dedução: não dava para continuar. O fotógrafo deu-lhe plena razão. Ainda hesitei, mas não havia alternativa: eu iria prosseguir.
Meus valorosos companheiros olharam para os lados atrás de algum passarinho ou flor perdida assim que comuniquei minha decisão. Senti que estavam querendo me dizer algo. Abri a porta e comecei a lenta e temerosa caminhada. Vencida a tora robusta e alguns metros adiante, o povoado se apresentava com duas pequenas ruas delimitadas por casas de barro e pau a pique, cobertas por folhas de babaçu.
Tudo deserto. Fui devagar, o coração batendo mais forte do que diante da onça. Quando estava na metade da rua começaram a sair pessoas do mato, muitas. Tinham visto o carro com a marca do jornal e sentiram que era a sua grande oportunidade: um jornalista naqueles confins era uma bênção dos céus. Logo estávamos reunidos, as lideranças e eu, já agora com a presença do fotógrafo, para conversarmos sobre o drama de São Pedro da Água Branca.
Jackson de Mendonça tinha vendido toda a área, que era de terras devolutas. Só receberia o pagamento se “limpasse” o terreno, o que exigiria expulsar os posseiros do povoado. Os moradores souberam que o grileiro, à frente de um destacamento da Polícia Militar do Pará, iria atacar em tal dia. Trataram de mandar um emissário a Imperatriz com uma versão utilitária da história: eram os paraenses tomando terras dos maranhenses.
As lideranças do Maranhão se mobilizaram rapidamente. Quando Mendonça e a PM paraense chegaram, foram realmente recebidos a bala. Não pelos moradores: pela PM do Estado vizinho. Elas não estavam ali para dar cobertura a posseiros contra um proprietário, mas para defender maranhenses ameaçados de violência por paraenses. Foi bala de PM contra bala de PM. No meio da gente que saiu do mato, onde se mantinha em atitude de defesa contra novo ataque, havia PMs armados de velhas metralhadoras Ina. Um deles, à frente de um grupo de posseiros, me levou para ver a área toda pretendida pelo grileiro, como mostra a outra foto.
Sem tiros
Voltei com a incrível história. Rendeu foto na primeira página de O Estado de S. Paulo e duas páginas internas, espaço semelhante reservado ao assunto em O Liberal. Lendo a reportagem, o representante em Belém da Comissão de Financiamento à Produção do Ministério da Agricultura me ligou para dizer que ia comprar a produção de arroz do povoado, que teria renda para se consolidar e resistir ao grileiro e ao SNI, o que de fato aconteceu.
Os arapongas tentaram no ano seguinte afastar a CFP, mas o diretor, que era um técnico honesto e competente, em plena ditadura, me fez a denúncia e a ecoei pela imprensa. O SNI recuou e a safra foi comercializada pelo preço mínimo oficial. Hoje, São Pedro da Água Branca é uma cidade consolidada à margem da maior ferrovia de carga do mundo, a de Carajás. A linha corta o município, que tem 12 mil habitantes, por 47 quilômetros.
Sem os tiros do grileiro, São Pedro agora ouve o apito do trem.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)