A fotografia escancarada nas primeiras páginas da imprensa na quarta-feira (16/7), mostrando um sorridente Gilmar Mendes reunido com o presidente Lula e os ministros da Justiça, Tarso Genro, e da Defesa, Nelson Jobim, é uma síntese do desordenamento jurídico e institucional em que vivemos. O douto presidente do Supremo Tribunal Federal passou o fim de semana anterior tal qual um superstar posando para fotografias, dando entrevistas e declarações para a grande imprensa, tentando recompor uma imagem, há muito perdida, de serenidade, isenção e independência judicante. Como um grande ator, insistia nestas teses básicas e necessárias para o funcionamento do poder judiciário, principalmente na de que um juiz deve se pautar pela análise fria das leis, mantendo-se surdo ao clamor popular.
Paradoxalmente, Gilmar Mendes mudou radicalmente seu comportamento e tenta, tal qual um político em campanha eleitoral, salvar-se de acusações generalizadas que vão desde suspeição não declarada em julgamentos à prevaricação, abrigando-se confortavelmente nas asas protetoras da popularidade presidencial. Em qualquer democracia séria, o quarteto que compõe esta foto deveria estar respondendo perante a lei por crimes de responsabilidade, que vão desde fechar os olhos para a criminalidade, que transita com grande desenvoltura pelas ante-salas presidenciais, passando pela apologia a crimes eleitorais, ambientais e práticas de escravismo, não poupando nem as forças armadas de serem usadas como milícias particulares de partidos da base de apoio governamental. Esta hora me lembra o comentário da jornalista Lucia Hipólito em seu blog, de que está na hora de revermos o filme O poderoso chefão.
Promiscuidade com a contravenção
Mas estamos aqui para falar de algemas e imprensa. Como estamos vivendo um grande teatro, sugiro continuarmos ainda na temática cinematográfica e revermos o clássico filme O homem do prego, de Sidney Lumet, onde são mostradas não só a violência do passado nazista, como a opressão social nos guetos norte-americanos. Em certo sentido, boa parte da sociedade brasileira vive uma situação semelhante, sob o jugo de pistoleiros, grileiros, traficantes e policiais desonestos. Mas nada disto sensibiliza a grande imprensa e certos meios judiciários tanto quanto um engravatado algemado. É como se os crimes financeiros fossem apenas ‘espertezas’ inerentes ao mundo dos negócios e as propinas pagas a autoridades, simples comissões pela justa intermediação.
Quando muito, nos casos mais rumorosos, são punidos os ‘peixes’ menores com a manutenção de algumas das prisões preventivas, no ‘caso Dantas’; a prisão de apenas um tenente e outros subalternos, no episódio de violência do Morro da Providência e no descontrole geral na segurança no Rio de Janeiro, onde policiais que puxam o gatilho são presos e chamados pelo governador de débeis mentais, mas nunca a imprensa cobra a responsabilidade de Sérgio Cabral, que vai vivendo entre viagens internacionais e a promiscuidade com a contravenção e máfias criminosas que dominam o estado do Rio de Janeiro.
Os ‘peixes’ graúdos
Nunca antes na história deste país se viram tantos juristas – alguns, ressuscitados da era da ditadura, outros para quem o notável saber jurídico é dispensável, sendo substituído por músculos de tanto carregarem malas de dinheiro – defenderem os direitos humanos e a sagrada instituição do habeas corpus, tão desprezados pelos juízes de primeira instância, mas felizmente resguardados pelos tribunais superiores. Qual seria a reação se a justiça funcionasse harmoniosamente em todas as suas esferas, resultando em condenações e prisões? Para a resposta, por incrível que pareça, recuarei mais de meio século.
Tudo começou com a denúncia do jornalista Edmar Morel, em sua coluna ‘Cidade Aberta’, no jornal Última Hora – esta mesma imprensa que hoje é acusada de atrapalhar a justiça – sobre irregularidades que ocorreram na Fiscalização Bancária (Fiban) – que era um órgão do Banco do Brasil com funções equivalentes às do Banco Central de hoje –, nos anos de 1953 e 1954, quando um grupo desviava francos franceses, que eram comprados no câmbio oficial e vendidos no mercado negro. Para isto, falsificavam notas fiscais ou adquiriam estas divisas por meio de fraudes no Banco Borges que, posteriormente, eram vendidas como se houvessem sido efetivamente empregadas na importação de bacalhau e vinhos franceses.
Mas, diferentemente dos dias de hoje, quando nada se apura e o próprio presidente da República passa a mão na cabeça de assaltantes da cantina do Congresso Nacional até na de seu secretário Gilberto Carvalho, o chefe de polícia empenhou-se na investigação do caso, o presidente do Banco do Brasil ordenou uma apuração rigorosa e isenta, e num tempo recorde de oito meses, após a denúncia feita pelo promotor Newton Marques Cruz, o juiz Oduvaldo Abritta condenava a quadrilha à pena de reclusão de mais de onze anos, em um processo de onze volumes e três mil páginas datilografadas. Os ‘peixes’ mais graúdos foram o diretor-presidente (dono) do Banco Borges, o chefe da Fiban, considerado o cabeça da gangue, os proprietários da casa de câmbio Rivoli e alguns altos funcionários do Banco do Brasil.
A força da caneta
Isto tudo ocorreu no ano de 1955, durante o mandato presidencial de Café Filho, quando a sociedade brasileira era muito mais frágil, mas, paradoxalmente, as suas instituições judiciárias responderam com mais seriedade, com as instâncias superiores – Tribunal Federal de Recursos e o Supremo Tribunal Federal – mantendo as prisões preventivas decretadas pelo juiz de primeira instância, inclusive o uso de algemas e o transporte do presídio para o fórum em viaturas policiais.
A par das brutais ameaças ao juiz, promotor e policiais envolvidos naquele processo, a grande imprensa comportava-se tal qual nos dias de hoje, não medindo limites na defesa dos poderosos, com suas tentativas generalizadas de desqualificar a primeira instância judicial e no final, por meio de matérias pagas, orquestradas pelo jurista Sobral Pinto, não pouparam nem os tribunais superiores, que não se dobravam aos seus pleitos. A única diferença é que Sobral Pinto usava um belíssimo estilo literário, escrevendo uma espécie de poemas ao diabo.
‘Carregando n´alma pesado luto, saí, ao anoitecer de anteontem, do Tribunal Federal de Recursos, onde acabara de assistir a um julgamento que terminara com uma decisão iníqua e monstruosa… Um raio, em pleno céu azul, não fulminaria tão brutalmente a minha ingênua esperança, com a decisão ilegal e desumana, no Supremo Tribunal Federal…
Nesta hora de indescritível sofrimento e de agonia atroz, meus lábios repetem, em surdina, e sem cessar, os acentos trágicos de Fagundes Varella: `Minh’alma é triste, pendida,/ Como a palmeira batida pela fúria do tufão,/ É, como a praia que alveja, como a planta que viceja/ Nos muros de uma prisão!´’
Mas, felizmente, a beleza literária deste blablablá (equivalente ao tal de clamor popular execrado por Gilmar Mendes) não sensibilizou os tribunais brasileiros e a justiça foi feita.
Após anos, ao juiz Oduvaldo Abritta restou o senso do dever cumprido e uma homenagem, no livro A revolta da Chibata, escrito por Edmar Morel – que representou a imprensa independente neste episódio –, com a dedicatória:
‘Ao dr. Oduvaldo Abritta, Juiz com J grande, com a estima e admiração de Edmar Morel.’
Ao jornalista, ficou a satisfação de ter contribuído com a força de sua caneta para melhorar a sociedade brasileira mas, talvez influenciado pela discrição do juiz, não deixou grandes registros em sua biografia deste fato, que certamente foi um de seus grandes trabalhos jornalísticos.
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Físico e escritor, Rio de Janeiro, RJ