A decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF-4), em Porto Alegre, que estabeleceu em todo o país novas restrições às propagandas de bebidas com grau alcoólico igual ou superior a 0,5º GL (o que inclui cervejas e vinhos) se configura como censura às agências e aos veículos de comunicação, além de ser equivocada juridicamente. É o que afirmam especialistas em Direito e entidades representantes do mercado publicitário e da indústria cervejeira, que prometem recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF). Entre as principais regras impostas pela determinação está o veto aos anúncios de cervejas antes das 21h e após as 6h, no rádio e na TV, bem como a associação dessas bebidas a esportes e outros temas.
Presidente do conselho da Associação Latino-Americana de Publicidade (Alap), Airton Rocha argumentou que a decisão estabelece censuras não só ao mercado publicitário, mas também aos veículos de comunicação como um todo:
– Essa decisão é uma forma de limitar uma atuação que não é o problema real em relação às bebidas alcoólicas. O mercado já é regulado pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), e, por isso, essas restrições acabam tendo um caráter de censura, pois impactam empresas, agências e os próprios veículos de comunicação, que têm na publicidade um pilar importante para a sua liberdade.
Presidente da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap), Orlando Marques disse ter percepção semelhante. Para ele, a decisão do TRF-4 é descabida, já que o setor é eficientemente autorregulamentado pelo Conar. Marques lembrou que as autoridades têm tomado decisões equivocadas quanto ao tema por confundir o seu papel:
– No Brasil, temos tendência em pedir um Estado paternalista, que, de alguma forma, assuma responsabilidades que cabem à família, como ensinar a não beber, por exemplo.
De acordo com o professor de Ética e Legislação Publicitária da ESPM-Rio Luiz Cavalheiros, restrições como as impostas pela sentença do TRF-4 deveriam ser resultado de discussões com as entidades relacionadas ao tema e com sociedade, e não de determinações judiciais.
– Uma vez que as regulamentações são estabelecidas por entidades que representam a sociedade, elas devem ser acatadas. O que me parece um problema, no entanto, é a forma como isso está sendo feito, sem o devido debate – explicou Cavalheiros.
Além disso, ele também classificou como censura qualquer tentativa de restringir o conteúdo dos anúncios:
– Não vejo problema em segmentar os anúncios por horário ou mídia. O problema é quando há intervenção direta na comunicação da empresa. Quando essas limitações tentam atingir o conteúdo das mensagens, isso é censura.
Decisão será contestada
A determinação do TRF-4 também é contestada do ponto de vista jurídico. O advogado Gustavo Binenbojm, representante da Associação Brasileira da Indústria da Cerveja (CervBrasil), parte interessada no processo, informou que irá recorrer. Segundo ele, a apreciação do caso pela Corte foi “ideológica”, e sua tramitação violou preceitos constitucionais.
– A lei pode agradar a uns e desagradar a outros, mas o que não pode é o Judiciário, sem legitimidade democrática, querer legislar – disse Binenbojm. – O julgamento teve viés ideológico. Acredito que no STF a decisão seja revertida.
A lei 9.294, editada em 1996, impõe uma série de restrições à publicidade de bebidas alcoólicas, mas apenas as de teor superior a 13º GL, isentando cervejas e vinhos do cumprimento das regras. A ação julgada anteontem em segunda instância na prática altera a lei, estendendo o conceito de bebida alcoólica a toda aquela com mais de 0,5º GL, mesmo critério usado na Lei Seca.
No entendimento de Binenbojm, o julgamento violou preceitos constitucionais em três pontos. Primeiro, ao desconsiderar uma ação já apreciada no STF sobre o mesmo tema, na qual a Corte Máxima decidiu que caberia ao Legislativo a mudança dos termos da lei. Em segundo, a ação proposta versa sobre a inconstitucionalidade e, portanto, deveria ser julgada pelo Tribunal Pleno. Por último, a usurpação do princípio da separação dos Poderes.
– Quem legisla são os eleitos pelo povo, cabe ao Judiciário a aplicação das leis – alegou o advogado.
Esse é o mesmo entendimento da Advocacia-Geral da União (AGU), que representa a União, ré no processo. Brenda Silveira Rigon, coordenadora regional de Serviço Público da Procuradoria Regional da União da 4ª Região, ponderou que o imbróglio jurídico está no fato de o Judiciário estar exercendo o papel de legislador.
– Um juiz não pode legislar – disse Brenda. – É possível que a gente recorra nesse sentido.
A AGU aguarda a publicação do acórdão para decidir os próximos passos. Segundo Brenda, o órgão vai entrar em contato com o Ministério da Agricultura, responsável pela regulamentação de bebidas alcoólicas, para definir as ações a tomar. Mas, como o recesso forense começa na próxima semana, qualquer decisão deverá se dar apenas a partir de janeiro.
Restrições têm defensores
Apesar das críticas à decisão, Fátima Vasconcelos, vice-presidente da Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), afirmou ver como positivas as restrições aos anúncios de bebidas alcoólicas, que influenciariam os jovens:
– Um dos grandes problemas em relação a esse tema é que a publicidade costuma passar uma imagem de que o álcool é pré-requisito para que as pessoas sejam felizes, ou mesmo saudáveis, quando isso não é verdade. E os maiores influenciados são os jovens.
Para ela, as regras para os anúncios de bebidas alcoólicas deveriam se espelhar naquelas aplicadas ao cigarro:
– (A restrição ao tabaco) é exemplo de iniciativa que vem ajudando a diminuir comportamentos prejudiciais à saúde.
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Sérgio Matsuura, Thiago Jansen e Glauce Cavalcanti, do Globo