Repete-se na imprensa, com freqüência, que o desvio de recursos públicos decorrente da operação do Banco Central (BC) com o Banco Marka, envolvendo 12.650 contratos de dólar futuro, durante a crise cambial de janeiro de 1999, foi de R$ 1,6 bilhão. Algumas matérias afirmam que esse dinheiro foi para o bolso de Alberto Cacciola.
A insolvência do Banco Marka, constatada na manhã do dia 13/01/1999, era do conhecimento da BM&F, do Banco Central e de todo o mercado financeiro. O prejuízo do banco, na posição de dólar futuro, era de R$ 136 milhões; e seu patrimônio, de R$ 66 milhões. Isto é, havia um rombo de R$ 70 milhões. Se o Banco Marka tivesse quebrado na BM&F, no dia 14/01, o rombo teria sido assumido pelos fiadores do Marka e pelos fundos da bolsa. Mas isto não aconteceu. O BC zerou a posição do Marka (isto é, vendeu 12.650 contratos e o banco saiu do mercado) e transferiu o rombo para o Tesouro Nacional.
Em qualquer das opções – o BC zerar ou não zerar a posição do Marka –, o prejuízo de Cacciola era o mesmo: R$ 66 milhões, o valor total do banco. Assim, a operação realizada pelo BC não alterou a situação do Banco Marka; alterou a situação de quem pagaria a diferença entre o prejuízo das operações e o patrimônio do Marka, se o BC não tivesse intervindo. Para esclarecer, inicio citando o ‘Relatório Final da CPI dos Bancos’, página 145, quanto à realização da operação na BM&F:
‘[…] o art. 67 prevê que a Bolsa determinará a forma de liquidação financeira. Ou seja, se o Banco Central houvesse optado em deixar o problema ser resolvido de acordo com o regulamento, competiria à BM&F definir a solução.’
Quem se beneficiou da ‘ajuda’
E a BM&F tinha a solução pronta, conforme declaração de seus dirigentes constantes das ‘Notas Taquigráficas da 14ª Reunião da CPI dos Bancos’. Cito um pequeno trecho da resposta de Edemir Pinto, então superintendente, a uma pergunta do senador Eduardo Suplicy:
‘Então, quebrando o Banco, ou seja, o Banco Central não tomando o procedimento que ele tomou, quebraria o Banco Marka. Quebrando o Banco Marka, além das comunicações a mercado que a Bolsa faria, convocaria um outro pregão […] para a liquidação compulsória das posições desse cliente inadimplente. […] E como o presidente Cintra colocou […], poderíamos chegar a uma cotação de até um trinta e três e trinta. E, como o presidente Cintra colocou, nós, com certeza, conseguiríamos uma liquidação dessas posições por algumas razões.’
Portanto, se o BC não tivesse decidido realizar a transação com o Banco Marka, a liquidação compulsória ocorreria na BM&F, de acordo com o que declararam seus dirigentes aos senadores, na CPI dos Bancos. E com o dólar futuro ao preço de R$ 1,3330.
Aqui não se cuida de discutir a escolha do BC de evitar as conseqüências, para o sistema financeiro, de o Banco Marka quebrar na BM&F. Cuida-se, apenas, do cálculo do valor da ‘ajuda’ e da identificação de quem se beneficiou, de fato, da ‘ajuda’.
Decisão de política cambial
O preço de zeramento da posição do Banco Marka determinado pelo BC foi de R$ 1,275 / 1 US$, enquanto o preço da alternativa de zeramento na BM&F seria R$ 1,3330 / 1 US$. Logo, houve um bônus na transação realizada entre o BC e o Banco Marka, cujo fato gerador é definido pela diferença entre os dois preços: o preço da operação na bolsa e o preço praticado pelo BC.
Visto sob outro ângulo, houve um custo aos cofres públicos de evitar que o Marka quebrasse na BM&F cujo montante é determinado pela multiplicação dessa diferença de preços pelo número 12.650 x 100.000 (número de contratos vezes valor do contrato). Portanto, o valor do bônus, ou do custo da decisão do BC de zerar a posição do Banco Marka ao preço de R$ 1,275, foi de R$ 69,6 milhões. Foi exatamente este o custo (ou desvio, como muitos chamam), para os cofres públicos, de evitar a quebra do Marka na BM&F, no dia 14/01/1999.
Completemos a análise. Os 12.650 contratos vendidos pelo BC venciam em 01/02, juntamente com outros 28.000 contratos vendidos em mercado antes do dia 13/01, estes sem qualquer relação com o Marka. Ocorre que o dólar disparou, chegou a R$ 1,98 no dia do vencimento e elevou o valor dos 12.650 para R$ 2,504 bilhões. Resultado: prejuízo adicional de R$ 825 milhões, dado pela diferença entre o valor dos contratos em 01/02 e o seu valor ao preço do zeramento na BM&F, R$ 1,3330. Esse prejuízo adicional não teve qualquer relação com o custo de evitar a inadimplência do Banco Marka na BM&F. Decorreu de decisão de política cambial do BC, política comum a todos os contratos que o BC vendera. E, assim como houve prejuízo, poderia ter havido lucro, eis que a manutenção da posição até o vencimento resultaria em qualquer possibilidade, pois no dia da operação não se sabia se o preço no vencimento seria igual, menor ou maior; e nem essa era a preocupação.
Muito bem documentado
Para saber quem se beneficiou da decisão do BC, basta indagar quem teria perdido se o BC não tivesse decidido evitar que o Banco Marka quebrasse na BM&F. A resposta se encontra nos depoimentos dos diretores da BM&F, durante a 14ª Sessão da CPI dos Bancos. Repetida diversas vezes, reproduzo alguns trechos:
‘Dentro das garantias do cliente, que é o Banco Marka, temos duas alternativas: primeiro, utilizam-se as garantias do próprio Banco Marka; num segundo passo, se elas não foram suficientes, utilizam-se garantias de terceiros. […] Se, eventualmente, algum outro saldo ainda tivesse como resíduo a ser coberto, aí o membro de compensação seria responsável por essa liquidação. […] E, pelo Estatuto da Bolsa, nesse momento, se o membro de compensação não tiver momentaneamente alguma liquidez, ele poderá recorrer junto ao Fundo Especial dos Membros de Compensação. Esse Fundo Especial dos Membros de Compensação é semelhante a um Proer […].’
Em suma, os testemunhos dos diretores da BM&F identificaram quem teria arcado com a diferença entre o prejuízo do Banco Marka e seu patrimônio: os fiadores (terceiros que deram cartas de fiança ao Banco Marka), o membro de compensação e os sócios da BM&F, devido ao uso de reservas financeiras da bolsa (fundo especial e fundo de liquidação). Foram esses os beneficiários da operação feita pelo Banco Central com o Banco Marka porque teriam pago a diferença entre o prejuízo do Banco e seu patrimônio, caso houvesse a liquidação compulsória na BM&F. Isto foi dito aos senadores, de forma clara, pelos dirigentes da BM&F, conforme muito bem documentado nas ‘Notas Taquigráficas do Senado Federal’.
Cálculos são complexos
O leitor pode indagar, legitimamente, quem se beneficiou da outra parcela do prejuízo com os 12.650 contratos, a parcela de R$ 825 milhões, correspondente à diferença entre o preço de R$ 1,3330 e o preço de liquidação das posições do BC em 01/02, R$ 1,9830. A pergunta é a mesma para os 67 mil contratos vendidos pelo BC nos dois dias que antecederam a alteração da banda cambial, em 13/01/99. Está claro que entre os ganhadores não se encontrava o Banco Marka porque este já estava fora do mercado desde 14/01/99, segundo a rica documentação da CPI dos Bancos. Quem se beneficiou foi quem estava no mercado de dólar futuro na posição comprada, direta e indiretamente. Você, leitor, pode ter se beneficiado, caso tivesse cotas de fundos comprados no referido ativo.
Se é tão simples, por que sobrevivem a cifra de R$ 1,6 bilhão e o Alberto Cacciola como beneficiário? Sobrevivem pela falta de conhecimento dos mecanismos operacionais das bolsas de futuros e pela falta de compreensão de que a atuação dos bancos centrais no mercado de moeda, para defender uma política econômica, implica em custo para a sociedade. Esse custo é mensurável e aparece na mídia; o benefício não é mensurável e não aparece na mídia. Foi assim no episódio de 1999 e o mesmo ocorreu em 2007, ano em que o BC teve um prejuízo de R$ 8,8 bilhões em swap cambial. Quanto aos beneficiários, como todas as transações são eletrônicas e indeléveis, ninguém encontrará qualquer registro de que o dinheiro perdido pelo Tesouro Nacional tenha saído de seus cofres, tenha passado pela BM&F, pelas contas correntes das corretoras e chegado na conta corrente de Cacciola.
Cálculos de perdas e ganhos em operações de bancos centrais são complexos. É natural que jornalistas que atuam nas áreas de política e policial não consigam entendê-los e interpretá-los. Os jornalistas econômicos, por sua vez, não têm dificuldades, mas o aspecto econômico do caso é passado. Fica a repetição sem a cognição.
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Economista, gerente da Marka Nikko Asset Management na época da crise cambial, Rio de Janeiro, RJ