Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Violência e política

Segurança pública é uma jabuticaba. Essa expressão, para designar um campo de políticas públicas e de pesquisas, não existe em nenhum outro lugar do mundo. Em Portugal, há a Polícia de Segurança Pública, mas numa acepção bem circunscrita. Nos outros países, é mais comum intitular essa área do conhecimento ‘criminologia’ e ‘estudos sobre polícias e justiça criminal’”, diz Renato Sérgio de Lima, ex-secretário executivo e atualmente membro do Conselho de Administração da ONG Fórum Brasileiro de… Segurança Pública (FBSP), em entrevista ao Observatório da Imprensa.

Renato é um militante dos direitos humanos. Mas não de modo desconectado. Em sua tese de doutoramento pela USP, em Ciências Sociais, defendida em 2005, ele se declara em busca da estruturação de “ações democráticas de pacificação social”. Politiza, portanto, no sentido nobre do verbo, o assunto. Mais do que de políticas públicas, é de política, ou Política, que se trata. Ainda que essa Política com pê maiúsculo não seja muito encontradiça na sociedade brasileira.

As políticas públicas que Renato preconiza devem buscar a transparência (quer dizer, a visibilidade) da informação. Falta informação? O que você acha, leitor(a)? “É claro!”, será a resposta (ou seja, é tudo obscuro). Mas faltam dados? Não exatamente, afirma Renato, com sua experiência de 23 anos na Fundação Seade (Serviço Estadual de Análise de Dados): “Dados sobre crimes são registrados desde o Império, mais precisamente desde 1871. Esses dados, entretanto, não são transformados em informação, muito menos em conhecimento”.

A maneira como a mídia jornalística brasileira usa os números confirma um dito atribuído a Joseph Stálin: morte de uma pessoa é uma tragédia; de um milhão, uma estatística. Cada vez mais, a violência é despersonalizada no noticiário “sério”, enquanto é dramatizada, explorada, realimentada nos programas policialescos que antecedem os jornais do horário nobre (salvo na Globo; a Globo também não vende horário para pregações religiosas; talvez exista uma correlação entre shows de violência e shows de fé).

Até o presente, uma das opções para tirar poder de um policial, por assim dizer rebaixá-lo funcionalmente, é mandá-lo para o setor de estatísticas. “Isso faz parte de uma cultura organizacional que mantém práticas institucionais anacrônicas, dissociadas da realidade social”, explica Renato.

Dilúvio acadêmico

Fora das polícias não faltam dados, informação e conhecimento. Entre 1983 e 2006 foram produzidas, em 168 universidades do país, 8.205 teses de doutoramento e dissertações de mestrado relacionadas de algum modo a segurança pública. Além dos 8.205 autores, os trabalhos envolveram 3.232 orientadores (videEntre Palavras e Números – Violência, Democracia e Segurança Pública no Brasil, 2011, de Renato Sérgio de Lima). A comunidade acadêmica interessada no assunto passou no país de 15 pessoas, nos anos 1970-80, para mais de 8 mil, hoje em dia. Em oito encontros anuais, o FBSP já reuniu 7 mil profissionais, pesquisadores e interessados.

Esse dilúvio acadêmico, quase sempre afinado com o movimento de defesa dos direitos humanos, teve, segundo Renato, um êxito importante: mudou o discurso político dos diferentes atores. Até determinada época, era amplamente aceita a ideia de que “bandido bom é bandido morto”. O massacre do Carandiru, em outubro de 1992, talvez tenha sido um marco sangrento desse processo. Daí em diante, o discurso permanece – não esquecer que o coronel Ubiratã Guimarães (1943-2008), comandante da tropa que entrou naquele presídio, ficou na suplência de deputado estadual em 1996 e foi eleito com boa votação em 2002, pelo PSD (então o partido de Paulo Maluf), usando o número 14111, em que o final é a contagem oficial de presos mortos –, mas perde força no conjunto da sociedade.

A concepção que esse discurso sintetiza – a da “limpeza”, a cargo de esquadrões da morte, Rota, Bope e congêneres, já que não existe legalmente pena de morte no país, muito menos a partir de condenações sumárias por policiais, “justiceiros” ou “milicianos” – foi ultrapassada, embora as práticas institucionais continuem muito defasadas: como dizem alguns pesquisadores, a polícia da “segurança nacional” ainda não foi substituída pela polícia do Estado democrático de direito.

Algo se move

A numerologia do noticiário de crime na mídia jornalística parece ser um biombo a ocultar narrativa mais abrangente, capaz de apontar caminhos eficazes para reduzir a violência, mas Renato comemora avanços.

O Fórum monitora o que acontece nos meios de comunicação brasileiros ao longo de dez dias após o lançamento de seu Anuário. Em 2013, conta Renato, foram publicadas ou transmitidas 1.150 reportagens. A chamada letalidade policial – o número de pessoas mortas por policiais, em diferentes situações – foi o terceiro dado mais destacado, após homicídios e estupros. Em 2014, o número de reportagens aumentou para 1.750 e o carro-chefe das matérias foi a letalidade (e sua contrapartida, a vitimização policial: a polícia que mata é a mesma que morre).

Maneira de chamar a atenção para métodos policiais (e judiciais, e penais) que não funcionam, ou melhor, funcionam muito bem para manter uma situação violenta e assustadora que interessa a diferentes categorias: bandidos violentos, policiais idem, toda a legião de operadores do Direito que gravitam em torno da criminalidade, carcereiros e, não menos importante, ao contrário, talvez o fator mais importante, num certo sentido, o da violência como representação social, o sensacionalismo midiático.

Na introdução ao Anuário 2014, lê-se que…

“(…) o país convive com taxas absurdas, que naturalizam mais de 53 mil crimes violentos letais e 50 mil estupros registrados [por ano!]. Isso para não falar nas constantes ameaças do crime organizado; no crescimento dos roubos; e nos padrões operacionais inaceitáveis de letalidade e vitimização policial, que vitimam ao mesmo seis pessoas mortas por dia pela intervenção das polícias e fazem com que o risco de um policial ser morto seja, em média, três vezes superior ao da população como um todo. Em cinco anos, as polícias mataram cerca de 11 mil pessoas.”

Meta para 2030

A proposta dos responsáveis pela compilação de dados é técnica, embora tenha um sentido político: coordenar, integrar e articular a segurança pública e a Justiça do país para obter uma redução de homicídios de 65,5% até 2030, ou redução média anual de 5,7%. Desse modo, daqui a 15 anos o número de homicídios teria se reduzido a 17.250.

Falta uma proposta propriamente política, que deve necessariamente passar pela discussão do financiamento e das modalidades das campanhas eleitorais, instâncias que criam laços entre governantes e legisladores, de um lado, e, de outro, criminosos e policiais. Sem salvacionismos, que o país sabe a que desastres conduzem.

Valor da vida

No fundo, jaz, nada inerte, a grande questão: por que a vida humana vale tão pouco no Brasil? Renato Sérgio de Lima é um dos que buscam respostas à pergunta. Essa busca remete obrigatoriamente ao passado histórico. Um sinal ele já obteve: descobriu que até 1830 os súditos tinham direito a matar até sete (7) pessoas sem ser processados. É esse problema, item obrigatório de uma ontologia do ser social brasileiro, que precisa ser encarado sem atenuantes.

Uma possível pista: trata-se de traço comum a todos os países da América Latina e do Caribe. Não teria havido, na origem, uma infeliz conjunção da violência dos colonizadores com a violência dos habitantes das terras americanas? É isso que faz as taxas americanas piores do que as europeias (e japonesas)? E ainda: por que há tanta diferença entre as taxas dos Estados Unidos, do Canadá, do Chile, do Uruguai, de um lado, e de países como Brasil, Venezuela, Guatemala, Honduras, El Salvador, México, etc., de outro?

Para complicar, assinale-se que na Alemanha, onde as taxas de homicídios são menores do que as médias da União Europeia, produziu-se, na primeira metade dos anos 1940, o pior genocídio registrado na história humana. E era o país com mais elevada escolaridade em toda a face da Terra. É possível que o fenômeno lá tenha sido a baixa credibilidade das instituições, que o colapso da República de Weimar reduzira a frangalhos.

Isso fecha o circuito e remete à melancólica constatação de que as instituições brasileiras tiveram muito pouca credibilidade desde que se constituiu a nação, em 1808, como já o tinham as da colônia. E repõe com todo seu peso, no tabuleiro da discussão, o tema da política. Ou melhor, Política.