Nos últimos anos falou-se muito na influência que os avanços nas tecnologias de digitalização, captação, manipulação e compartilhamento de imagens tiveram na democratização da expressão visual.
Mas nem tudo é boa notícia. Apesar da enorme conveniência e na popularização de uma técnica que até há pouquíssimo tempo era de domínio exclusivo de profissionais especializados, a banalização da fotografia tem seu lado negativo.
Não me refiro ao culto à imagem na autoestima de uma geração crescida sob as ditaduras do bizarro, do perfeito, do formidável ou do retocado, porque isso está além da minha área de especialidade. Minha preocupação é outra. Ela se refere aos golpes profundos e silenciosos que as novas tecnologias tem realizado na arte fotográfica.
A facilidade na manipulação da imagem digital acabou se transformando, quem diria, em um problema. É comum entre os novos profissionais um descuido na produção, deixando qualquer deslize para retoque posterior. O volume de imagens produzidas é cada vez maior, e todas podem ser imediatamente revistas, alteradas, apagadas ou retocadas posteriormente. O processo pode garantir um fluxo de trabalho mais rápido e eficiente, mas dificilmente garantirá melhores imagens. E raramente gerará uma reflexão ou aprendizado sobre elas.
O Photoshop, que surgiu como assistente para a finalização de imagens, passou a realizar tanta falsificação que colocou em dúvida a ideia de “verdade” fotográfica, no melhor estilo soviético. De tanto usado, o neologismo se tornou pejorativo. Muitos se orgulham em conseguir imagens “sem Photoshop”, o que é um preciosismo supérfluo, como um ator sem maquilagem.
Nova estética
Profissionais experientes sabem que a riqueza da expressão fotográfica não está no suporte nem no retoque, mas na riqueza e imprevisibilidade da produção de imagens, o que sempre demandou grande cuidado.
As novas câmaras digitais parecem ter como meta a eliminação de todo e qualquer defeito possível. Fabricantes anunciam modelos capazes de registrar imagens em fantásticos ISO 204800, mais de duas mil vezes mais sensíveis do que o velho filme ASA 100. Tecnologias de controle do movimento em novas objetivas parecem capazes de remover qualquer borrado que não seja intencional. Até mesmo o foco pode ser, via Instagram, decidido mais tarde.
Estaremos condenados a um mundo de fotos perfeitas, alteradas apenas por intenção de seus fotógrafos, desfeitas a qualquer instante?
Acredito que não. Da mesma forma que os problemas de comportamento das mídias sociais não são resultados da tecnologia, mas dos vícios de seus usuários, a redução da qualidade artística na fotografia contemporânea não é causada pelas novas técnicas, mas por seu abuso. E pode ser facilmente revertida.
À medida que novos profissionais começarem a desenvolver suas assinaturas artísticas é provável que surjam novas estéticas, rediscutindo muito do que se entende hoje por registro de imagens.
Recursos como a fotografia panorâmica, combinada a técnicas de renderização 3D poderão criar novos ambientes fotográficos mais próximos da cenografia do que da ilustração. Câmaras de foco dinâmico, do tipo Lytro, podem ser usadas para criar movimentos cinemáticos em fotografias. Novas imagens imersivas valorizarão o trabalho de composição tridimensional, ainda restrito às técnicas complexas e caras dos profissionais de cinema e animação. Isso sem falar do uso criativo de drones e da criação colaborativa, associado a novas tecnologias de captação e visualização.
Uma nova estética fotográfica está para surgir. Ela deverá ser mutante, dinâmica, revista e alterada como uma memória. Os novos fotógrafos não deverão rejeitar a tecnologia, mas abraçar seu potencial para contar as novas histórias.
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Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP, autor do livro Enciclopédia da Nuvem; www.luli.com.br