O jornal espanhol El País publicou a melhor e mais completa cobertura na web sobre o fato mais importante do ano que agora chega ao seu final: o início das negociações entre Cuba e Estados Unidos com a finalidade de pôr fim ao embargo contra a ilha imposto pelos Estados Unidos ao governo comunista cubano. É o primeiro vislumbre, ainda que bastante frágil, da derrubada do “Muro do Caribe”.
As negociações começaram em 2013. O mundo e a mídia nada souberam sobre o que estava acontecendo entre os dois maiores inimigos históricos das Américas. É impressionante o poder do Vaticano quando se trata de colher e tratar a informação. Não há poder igual no planeta. E o papa Francisco criou sua própria rede social dentro do minúsculo Estado pontifício, para servir de contrapeso ao poder da cúria romana, tradicional, reacionária e perdida entre os mistérios místicos da Igreja e as reais necessidades espirituais e materiais da gente mais humilde.
El País vem acompanhando de perto as complexas relações de uma Igreja com dois papas (o emérito Bento 16 e o papa Francisco). Em 2005, o repórter Enric González (24/8) explicou que o cardeal Jorge Mario Bergoglio liderava uma coalizão liberal dentro do conclave que entronizou o então cardeal Ratzinger. O argentino poderia ter sido eleito, mas recuou, “com medo”, segundo a reportagem. A explicação não me convenceu. O atual pontífice não é um homem medroso nem tímido. Por que o temor, então?
Estaria ele assustado com a acusação que pesou sobre sua cabeça por muito tempo em sua terra natal? Estaria ele envolvido na delação de dois padres sequestrados pela ditadura argentina? Nos anos de 1970, dois missionários jesuítas, Franz Jalics e Orlando Yorio, foram capturados e torturados pela turma da ESMA, a Escola de Mecânica da Armada, que serviu de fachada para os abusos desumanos cometidos pela ditadura argentina comandada pelo presidente Jorge Videla e outros assassinos. E a suspeita de delação pairou sobre Jorge Mario Bergoglio durante muito tempo. Invadiu o século 21.
Papa quer acabar com a corte papal
O papa Francisco é um grande comunicador. Sabia que enquanto restasse qualquer resquício sobre a acusação da suposta delação na mídia e nas mentes dos formadores de opinião, ele não poderia fazer bem o que mais gosta: comandar com energia, disposição e bom humor. Durante anos suspeitei dele. Em 2013, a revista Exame (21/3) publicou um artigo onde os dois padres desmentiram com firmeza a acusação.
Em maio do mesmo ano, o periódico italiano La Stampa, em seu projeto “Vatican Insider“ (10/5), publicou a reportagem que sepultou para sempre qualquer dúvida sobre o caso dos dois padres jesuítas sequestrados pela ditadura na Argentina. O padre Jalics, então com 87 anos, revelou que suspeitou do então provincial (superior) dos jesuítas (o atual papa Francisco) até os anos de 1990. Em 2013 encontrou-se com o papa e o livrou de toda e qualquer suspeita. O boato foi “plantado” pelos militares de Videla, nos anos de 1970, e alimentado por amigos da presidente Cristina Kirchner quando Bergoglio foi cardeal de Buenos Aires.
Os ecos do boato não afetaram o pontífice. Não tinham base factual. Ele seguiu em frente e iniciou um processo de renovação no alto clero da Igreja Católica. Começou com a Espanha, que abriga uma das congregações mais reacionárias na Europa católica. Continuando com o El País (20/12):
“A sua opinião é que a hierarquia espanhola é muito ruim. Porque eles não têm grande informação, nem são pastores. Se consideramos que, em 2015, 15 bispos serão jubilados, e que ele os substituirá por gente de sua confiança, e que em Roma ele fará o mesmo – em fevereiro acontecerão novas nomeações –, em quatro anos ele haverá mudado o perfil do próximo conclave.”
O papa Francisco quer “a cúria romana a serviço das conferências episcopais”, explicou o jornal espanhol. Ele quer acabar com a corte papal, seus títulos e barroquismos fúteis (ele se atreve a isso). Quer liquidar o regime monárquico da Igreja (ele seria considerado herege não muito tempo atrás). É um trabalho longo e gradual e será deixado como legado eterno de sua passagem pelo Vaticano.
Intolerância política e “patrulhas”
Juan Arias (outro grande nome do periódico espanhol), que é jornalista mas já foi padre católico, escreveu a matéria mais adequada para a crítica da realidade política em que vivemos, usando o caso da mediação do Vaticano no processo de reaproximação entre Cuba e os Estados Unidos. Um bom ponto de partida. Arias compreendeu que, em um determinado momento histórico em que a política e os políticos andam desgastados e fora de sincronia com a vontade do povo, o papa “de algum modo a legitima e restitui sua verdadeira essência”. Brilhante e verdadeiro.
O jornalista ex-sacerdote acredita que esse papa é mais do que o chefe da Igreja Católica. Ele é “uma esperança de paz em um mundo onde ainda se derrama muito sangue inocente”. Há uma mensagem para os brasileiros por trás da postura firme e da coragem do papa argentino. Ele é um tipo curioso de revolucionário conservador. Ou um preparador de mudanças. Um liberal radical que quer acabar com o ódio entre quem pensa, age ou experimenta o mundo de forma diferente da forma convencional de viver que herdamos da história. Daí vem a aceitação dos homossexuais, mas também a rejeição completa ao aborto.
Ele prega a tolerância entre todos os homens. E vai além das palavras. Escreveu muitos livros, mas quer pregar para o povo, e uma Igreja mais interessada no mundo dos mais pobres. Nós precisamos de valores assim no Brasil. E muito. Chegamos ao fim de 2014 marcados pela virulência de uma campanha eleitoral que envenenou as nossas convivências, amizades, amores, ambientes de trabalho e até famílias.
A intolerância política, religiosa, as “patrulhas” contra a razão científica e o pensamento racional, somados aos inacreditáveis ataques aos direitos humanos e à negação completa do humanismo de qualquer natureza inquietam as mentes alertas de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, conheceram um dia a voz, o cheiro, e cor e os métodos bárbaros empregados por todas as ditaduras latino-americanas na década de 1970, principalmente.
Arautos do ódio
Não precisamos da sombra maldita do poder militar do passado sobre nossas vidas mais uma vez. Nossa “república” sempre foi uma “concessão dos militares”, que acabaram com a monarquia e continuam a interferir na vida civil até hoje. Se a nossa Comissão da Verdade e Reconciliação apresentou magros resultados vamos agradecer a quem? Quem matou o coronel Paulo Malhães, que falou à Comissão, confessou torturas e foi encontrado morto por asfixia por três homens que invadiram sua casa em Nova Iguaçu?
O terror ainda vive no Brasil. E há gente na rua querendo sua volta. Por isso o discurso e a prática do papa são tão importantes para nós, brasileiros. Ele é um verdadeiro pontífice. Constrói pontes para refazer caminhos desfeitos, erros cometidos, gente apartada sem razão suficiente. Ele é um pacificador, que trouxe à mesa de negociação inimigos conhecidos como irreconciliáveis. E não teve medo das muitas vozes de protestos nem dos muitos insultos dos cínicos. Ele é ousado e corajoso. Sabe encontrar caminhos onde muitos só enxergam desespero.
O jornalista Alberto Dines (20/12), também no El País, publicou artigo que serviu como resumo final da cobertura do jornal. O poder de síntese desse profissional é espantoso. Sua elegância na escrita é quase prosa poética:
“De repente, um formidável aumento de expectativas. De uma hora para outra ficou possível vencer isolamentos, cogitar convergências, respeitar adversários, pensar no impensável e sonhar o sonho impossível. O papa Francisco aniversariou naquele 17 de dezembro. O presente, ganhamos nós.”
Final dourado e emocionante para uma cobertura caprichada e diversa que o jornal espanhol fez sobre o papel do papa na normalização das relações entre Cuba e os Estados Unidos. Jorge Mario Bergoglio, mais conhecido como papa Francisco, trouxe para nós, brasileiros, neste fim de ano, a esperança, o sonho e a necessidade de nos aceitarmos em nossas diferenças. Temos o dever de sermos maiores do que elas sempre. E quando falhamos ou fazemos escolhas incautas (e fazemos isso sempre), precisamos ser aceitos com nossos erros, e não mortos por acreditar em algo diferente ou fazer algo que não devíamos. O nome disso é perdão, o irmão mais velho da esquecida tolerância.
Os cínicos vão dizer que tudo não passou de jogo de interesses que beneficiou um presidente em decadência, uma Igreja assolada por escândalos sucessivos e um ditador cubano pressionado pela realidade insustentável da ilha submetida ao bloqueio implacável dos americanos e sua maldita Guantánamo, a base militar ianque encravada na ilha caribenha que abrigou torturadores credenciados pelo governo americano. É um caminho. Mas eu escolhi outro.
Que falem então os petulantes e os arautos do ódio. Podem maldizer e esbravejar contra a tentativa de reaproximação entre os dois países. Há muita oposição ao entendimento, em todas as partes: republicanos, democratas, cubanos fanáticos de Miami, sul-americanos inconformados com a vida real e seus desconfortos e obrigações. Há muito ódio no ar. Que falem inimigos dos direitos humanos, porque o que Francisco fez ninguém vai desfazer. Ele anunciou e preparou com seu próprio suor o caminho para um futuro de conciliações e reconciliações, onde os velhos rancores serão esquecidos em uma nova era de uma paz vindoura.
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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor