Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Da História, à ficção, à História

K. Relato de uma busca é o livro de estreia na ficção do jornalista Bernardo Kucinski. Originalmente publicado em 2011 (Expressão Popular) e reeditado em 2014, o romance trata da procura de um pai, o escritor de iídiche chamado K., pela filha desaparecida na época da ditadura militar, uma jovem professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo. Logo no início, o autor escreve: “Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.” Ou seja, os limites entre realidade e ficção são postos à prova.

Muitas são as menções a eventos e personagens reais, embora a forma não deixe dúvidas de que se trata de uma obra de ficção. No primeiro capítulo, “As cartas à destinatária inexistente”, é Kucinski quem escreve, referindo-se em primeira pessoa ao desparecimento da irmã. Nos capítulos seguintes, o narrador em terceira pessoa conta a história quase sempre do ponto de vista de K., o pai.

O texto e a angústia do pai são kafkianos por excelência: “O pai que procura a filha desaparecida não tem medo de nada. Se no começo age com cautela não é por temor, mas porque, atônito, ainda tateia como um cego o labirinto inesperado da desaparição.” O absurdo, aqui, pode ser formulado da seguinte forma: os militares não necessitavam de mandado de prisão, não assumiam as prisões e, ainda, sumiam com os presos. Resultado: “Também os sobreviventes daqui estão sempre a vasculhar o passado em busca daquele momento em que poderiam ter evitado a tragédia e por algum motivo falharam.” Carregam um peso que não lhes pertence.

Reconhecimento do trauma

Enredado nessa lógica absurda, a busca (infindável) de K. pela verdade talvez deixe de ser pela filha desaparecida e passe a ser pelos mecanismos que levaram ao seu fim trágico. Entretanto, como a dor da tortura, a vulnerabilidade de parentes de desaparecidos diante de informações é eterna. Pode-se aprender a lidar com ela, mas em um “sistema repressivo ainda articulado” ela nunca cessa.

O Brasil ainda vive desdobramentos desse absurdo, pois, com o respaldo da Lei da Anistia, insiste no lema da reconciliação. Contudo, só pode haver reconciliação quando os traumas são reconhecidos e encarados. Em direção oposta, exercitamos um gozo perverso: apostamos na cicatrização da ferida que sequer foi assumida. Nesse caso, como podemos falar em reconciliação?

K., por outro lado, marca um avanço em direção ao reconhecimento do trauma. Da História à ficção: à História: “Assim, não era mais o escritor renomado a fazer literatura com a desgraça da filha; era o avô legando para os netos o registro de uma tragédia familiar”.

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Renato Tardivo é escritor e psicanalista