Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A tribo jornalística

O jornalista faz parte de uma aldeia riquíssima em peculiaridades. Cada profissional tem seu estilo, suas tendências de enfoque. Nas ruas, alguns procuram autoridades públicas para fazer matérias; outros preferem os subúrbios, buscando informações com as testemunhas oculares de um fato. Todas essas características compõem uma redação, que converge personalidades e capacidades em favor dos interesses de seus públicos.

Felipe Pena, no livro Teorias do jornalismo,explica que gnose (ou gnosis) pode ser traduzida por um tipo de conhecimento esotérico que se transmite mediante ritos de iniciação. Tal conhecimento, entretanto, é restrito, fechado a um grupo limitado de iniciados. A eles, são repassados inúmeros saberes, necessários, no caso dos jornalistas, à construção social da notícia. Nesse sentido, é possível engendrar os mais sonhadores quadros.

A reunião de pauta pode ser considerada um ritual em homenagem ao “deus da informação”. Pessoas pensam nos sacrifícios a serem feitos por ele; como deixá-lo feliz para que ele mande seus “anjos dos anúncios”, a fim de ocupar os hiatos econômicos que mantêm a integridade da tribo. Editores-chefes são os caciques, aqueles dotados da mais aflorada sabedoria e capazes de ensiná-la às próximas gerações. Há também língua própria, o “jornalês”.

Os assessores formam uma facção à parte. Rival e abonada. Possuem cultura própria, constituem-se de outros valores. Quando acontece o escambo de mercadoria – a informação –, são zelosos e estratégicos. Pensam muito adiante, se regem pelo resultado. Planejam o ano inteiro, criando artimanhas para vencer possíveis crises e garantir a sobrevivência dos seus. A principal motivação que os rege é a imagem da aldeia perante o mundo.

Rituais por trás da notícia

Uma característica reconhecida no meio jornalístico está no despojo do descanso, milenarmente conhecido como café. Trata-se de uma interrupção no processo de trabalho, um momento de relaxamento, por assim dizer. O objetivo é reorganizar as ideias, espairecer, desanuviar. Talvez repensar o enfoque, discutir os valores que regem uma matéria a ser publicada. Sem a companhia de alguns colegas, todavia, tal rito de autoconhecimento perde seu propósito.

Nas redações dos anos 1960-70, o cigarro era permitido em muitas delas, como escreve magistralmente Hunter S. Thompson, em Diário de um jornalista bêbado. Visitantes encontravam uma verdadeira sauna artificial acinzentada. Hoje em dia há ambientes especiais para o fumo, em locais arejados que possam dissipar a névoa indesejada. Entre fumantes, o encontro marca uma série de discussões, desde política até o futebol. Piadas e brincadeiras são frequentes. Uma oração coletiva, portanto. De jornalistas.

Os focas seriam os pupilos que estão aprendendo os valores da tribo. Jogados à cela dos leões, devem enfrentar as dificuldades diárias para se tornar parte do grupo, mesmo que tenham de bater de frente com os membros mais antigos. São testados o tempo inteiro para mostrar o limite da sua disposição. Os melhores passam a incorporar a aldeia. Em tempos de crise, contudo, quando o deus da informação está azedo e saturado, muitos deles são mandados embora. Normalmente, encontram abrigo em facções vizinhas, especialmente a dos assessores.

Dentro dessa brincadeira, entram os valores sólidos da profissão. Nas palavras da socióloga Gaye Tuchman, há um “conhecimento sagrado” que permite aos jornalistas discernirem o que é notícia entre uma série de acontecimentos. A teoria gnóstica colore algo que realmente acontece, portanto: a transmissão deste conhecimento sagrado, pois fato, intuição e percepção todos têm, mas somente os agentes do jornalismo recebem o treinamento para empacotar e vender uma grande história que reflita o interesse público.

Assim sendo, essa grande tribo pode se modificar, mas nunca acabar. Não há mídia que interrompa tal tradição secular de transmissão de saberes. Lembre-se: o bom jornalismo sempre prevalecerá. E com cada vez mais rituais, inequivocamente.

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Gabriel Bocorny Guidotti é bacharel de Direito e estudante de Jornalismo