Num mesmo laboratório reúnem-se biólogos, físicos, engenheiros e programadores. Eles lidam com chips, DNA, sistema nervoso, robôs e o que mais de pioneiro a ciência puder oferecer. Juntos, com parte de suas experiências financiadas por instituições de ensino, todos buscam desenvolver novas ideias. Só que há uma diferença, discreta na forma, mas gigante no objetivo, entre o que algumas dessas equipes têm feito mundo afora e o senso comum acerca de quem trabalha com pesquisa científica. Esses novos grupos não querem simplesmente desenvolver tecnologias. Querem fazer arte.
A questão que deve ser respondida acerca da junção entre ciência e arte é menos “como” e mais “quando”. Quando os visitantes de um museu poderão conectar seus sistemas nervosos com uma rede de informações? Quando as telas de exibição de um filme deixarão de ser estáticas e assumirão formas distintas durante uma projeção? Quando as obras de arte poderão se conectar com bancos de dados e ser modificadas em tempo real sem uma programação prévia? Quando os livros trarão recursos com realidade aumentada para qualquer pessoa usando um óculos modernoso ter uma experiência sensorial de leitura? E quando os óculos não serão mais necessários?
Talvez ontem, talvez em 2015, certamente num futuro próximo.
“O nível de conexão entre ciência, informação e arte vem se aproximando e gerando situações novas”, diz Alberto Saraiva, curador de artes visuais do Oi Futuro. “O que tem acontecido é que o artista deixa de ter um ateliê e passa a ter um laboratório. As equipes mudam, seus assistentes passam a ser técnicos ou cientistas. Então os mundos se confundem, a ponto de a gente não saber o que é artístico e o que é científico. A arte vira um dado de pesquisa, é estudada em universidades. É comum encontrarmos instituições acadêmicas patrocinando uma obra de arte.”
Por exemplo, o Oi Futuro Ipanema exibe até 1º de fevereiro a obra “Teogonias visuais: imagens do deus computacional”, do paulista Fabrizio Augusto Poltronieri. Trata-se de um poema, mas um poema do século 21: Poltronieri transforma textos de Hesíodo, escritos no século VIII a.C., em imagens aleatórias geradas por um programa de computador.
Já o Multiplicidade, festival de performances audiovisuais que acontece desde 2005 no Rio, exibiu em novembro dois trabalhos do canadense Herman Kolgen. Para um deles, intitulado “Seismik”, o artista desenvolveu um software em que analisa os campos magnéticos e atividades sísmicas ao redor do mundo para gerar imagens e sons em tempo real. “A arte sempre serviu para expandir o limite humano, aumentar nosso entendimento de quem somos. Já a tecnologia é um meio que potencializa a arte”, diz o físico Luiz Alberto Oliveira, curador do Museu do Amanhã, instituição que será aberta em março, no Píer Mauá, no Rio. “Uma inovação próxima é o desenvolvimento de interfaces diretas entre o sistema de informação de um computador e o sistema nervoso de uma pessoa. A partir daí pode-se criar até uma interação entre os cérebros de duas ou mais pessoas. Podemos imaginar experiências coletivas, com canais abertos entre grupos durante uma performance. Devemos ver algo assim daqui a cinco a dez anos.”
Ilusão de ótica causada por robôs
Em 1997, o artista carioca Eduardo Kac causou polêmica ao implantar um chip de computador no calcanhar, com transmissão ao vivo pela TV – mas a possibilidade de aquele chip dialogar com o sistema nervoso ainda era distante. Hoje, segundo Luiz Alberto Oliveira, pesquisas de neurocientistas, como o paulista Miguel Nicolelis, mostram que o corpo humano pode, sim, se ligar e interagir com um sistema informatizado. “Nas artes visuais, há muita gente estudando nanotecnologia, neurociência, gente que busca criar interações com o corpo humano”, afirma Batman Zavareze, curador do Multiplicidade. “Pensando em tudo o que eu recebo para o festival, o mais impressionante é perceber como ciência e arte estão bastante próximas. Tem cineasta trabalhando com astrônomo da Nasa e especialistas em robótica para desenvolver novos formatos de tela. Eu vi um espetáculo há uns meses na Áustria em que quatro robôs mudavam a posição da tela e conseguiam criar ilusão de ótica. Depois conversei com os engenheiros e os artistas, e eles me explicaram que aquilo nada mais era do que o resultado da combinação de conhecimentos.”
Em alguns casos, o conhecimento é ainda mais próximo da realidade, trazendo para o presente o que seria o futuro da arte. Um equipamento como os óculos Google Glass, que incorpora recursos de realidade aumentada, já existe: a empresa ainda não anunciou o início das vendas para o consumidor comum, mas pequenos grupos puderam adquirir unidades em 2013.
Imaginando uma finalidade artística, um par de óculos do tipo permitiria a expansão da oferta de informações visuais de um espectador de um filme, de uma peça ou de uma exposição. “Se você pensar nas simulações que poderão ser feitas com esses óculos, a quantidade de criações é infinita”, diz Pedro Conforti, integrante do coletivo carioca Moleculagem. “Eles ainda não foram utilizados para experiências artísticas, então existe um caminho gigante a ser descoberto. Poderemos, por exemplo, criar ambientes virtuais completamente novos.”
Também por realidade aumentada, aplicativos à venda para telefones celulares, como o Aurasma, permitem que a leitura seja incrementada com vídeos, músicas ou imagens que não cabem no limite físico de um livro. A Marvel, editora de quadrinhos americana responsável por personagens como os X-Men e os Vingadores, por exemplo, já lançou revistas em que o usuário pode apontar o telefone e receber informações que não estão no papel. É possível que um herói como o Capitão América apareça no celular e conte parte da história para o leitor-espectador-ouvinte. “A realidade aumentada está cada vez mais simples de ser produzida. Antigamente você precisava de um programador e de um designer. Hoje, o próprio escritor pode criar com facilidade”, afirma Cristiane Costa, escritora e coordenadora do curso de Jornalismo da UFRJ. “Assim, a gente não fala mais sobre leitura. A experiência da leitura se transforma numa performance sensorial. E é uma tecnologia que pode ser usada também para games e para o cinema.”
O olhar em transmissão em tempo real
Naturalmente, o interesse artístico pela tecnologia é tão antigo quanto a própria arte. Mas o que talvez tenha mudado é a velocidade dos avanços da ciência. Alberto Saraiva lembra que, nos últimos dois séculos, três novas mídias – a fotografia, o cinema e o vídeo – desenvolveram-se e alteraram a produção artística. Hoje, com os computadores e a internet, a expansão foi gigante, levando os artistas a se debruçarem sobre conexões, comunidades virtuais e redes.
É com esse pensamento que Christiane Jatahy, cineasta e dramaturga, notabiliza-se por trabalhos em que pesquisa a relação entre linguagens. São dela o filme A falta que nos move (2011) e a peça E se elas fossem para Moscou? (2014), ambas produções que lidaram com processamento de imagens em tempo real. “Eu fico pensando numa hora em que a gente vai poder enviar uma imagem para a tela de cinema ao mesmo instante e com a mesma qualidade que ela está sendo produzida, sem cabos e sem delay. Isso pode ser até uma transmissão telepática. Se a gente pensar a câmera como um olhar, será que um dia a tecnologia vai transmitir o nosso olhar?”, pergunta Christiane.