Tenho um monte de lembranças dele, algumas tão vívidas que, desconfio, resistirão ao mais roaz Alzheimer – e uma delas me devolve esta cena: cara amarfanhada de quem mal deixara o travesseiro, Geraldo Mayrink entra na redação do jornal e, antes de tomar assento, rosna: “Ano de merda!”
Tantas décadas depois, já não sei dizer se os 365 dias em questão mereceram as cinco letrinhas. Em todo caso, era impossível sabê-lo naquela manhã: o ano mal começara – estávamos ainda nas primeiras horas de um 1º de janeiro. Havia um plantão jornalístico pela frente. Tendo começado assim, com trabalho em pleno feriado, aquele pode mesmo não ter sido um grande ano. E o Mayrink, um cético animado, pouco se enganava em suas avaliações. Até por isso me faz falta o amigo que perdemos em 2009, o que fez desse, seguramente, um ano de merda.
Ele faz falta a todos nós – aos filhos, Gustavo e Marieta, que pouco tempo depois perderam também a mãe, Maria do Carmo; à multidão de seus amigos; ao jornalismo brasileiro, do qual Geraldo Flávio Dutra Mayrink, mineiro de Juiz de Fora com passagem por jornais e revistas de Belo Horizonte, Rio e São Paulo, foi um ponto altíssimo.
Para ter certeza disso, eu nem precisaria ter trabalhado com ele em algumas redações. Era um craque da reportagem e do texto, e essa raridade que é um chefe sem chilique. Perdi a conta do que o Mayrink despretensiosamente me ensinou – e não só no jornalismo. A ele devo também uma leitura fina dos originais de um livro meu, para o qual, de quebra, achou esta maravilha de título: O Desatino da Rapaziada. Lembro-me do susto que levei quando Antonio Fernando De Franceschi (que, como diretor do Instituto Moreira Salles, propusera e bancara o projeto) me passou por telefone as quatro palavrinhas. Em seguida adorei, irreversivelmente. Custei, confesso, a me dar conta de que havia mais ali, um pingo de arte poética: O Desatino da Rapaziada, reparou Thiago de Mello, “é um decassílabo perfeito!”
Apanhado de lembranças
Tão rodado quanto o meu amigo, em toda parte conheci excelentes jornalistas. Poucos, no entanto, capazes de produzir matérias alentadas sem um bocado de sofrimento, tantas vezes desproporcional ao resultado. Ou por outra: conheci muitos que escreviam, lampeiros, textos extensos – mas transferindo para o leitor o sofrimento. Se alguém tiver que sofrer, não seja o leitor – e quando percorro a galeria dos que não me pareciam martirizar-se na escreveção jornalística, só encontro dois: o Mayrink e o Decio Bar, também este já desaparecido, dupla sob cujo comando tive o privilégio de trabalhar numa Veja de outros tempos, hoje inimaginável. O batente era pesado, mas, graças à leveza e bonomia de Geraldo Mayrink, passávamos ao largo das neuras que os desavisados podem confundir com competência.
Com o Mayrink trabalhei também na IstoÉ (quase escrevo IstoEra), e, como colaborador, na Goodyear, ótima revista por ele bolada e dirigida, que ironicamente acabaria vítima de seu sucesso: tinha distribuição gratuita e, como havia cada vez mais gente pedindo exemplares, a tiragem foi crescendo – até a fábrica de pneus considerar que a brincadeira ficara cara demais.
Dava gosto escrever na Goodyear, que além do mais conferia visibilidade a seus colaboradores. Nada a ver com as redações daquele tempo, e menos ainda com as de hoje, tristemente desidratadas. Um outro mundo. Dois dias depois de entregar minha primeira matéria, recebi um telefonema – e , paranoico, pensei: pronto, não gostaram. Nada disso: queriam saber por que eu ainda não tinha ido buscar o cheque.
Também na Goodyear deixou Mayrink a marca de seu texto sedutor, alguns deles assinados por Flávio Dutra. É mais que tempo, aliás, de reunir em livro o ouro em pó que seu talento foi aspergindo por aí. Uma pequena parte ele mesmo recolheu em Escuridão ao Meio-Dia e Obrigado pela Lembrança, hoje inencontráveis. Que volte também às livrarias a delícia que é Memorando, dele e de Fernando Moreira Salles, apanhado de lembranças que utilizou a fórmula inaugurada por Joe Brainard em I Remember e retomada por Georges Perec em Je me Souviens. Há muito mais nos arquivos do Jornal do Brasil, Veja, IstoÉ, Playboy, Goodyear – fartura de prazer para o leitor e excelente escola para jornalistas.
Vamos nessa, Marieta e Gustavo Mayrink?
******
Humberto Werneck é colunista do Estado de S.Paulo