Acompanho a repercussão do anúncio dos ministros para o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff na linha do tempo do meu Facebook. Entre meus amigos virtuais, em geral inclinados à esquerda, a tônica geral dos que se expressam é de indignação, pelo menos decepção – sentimento mais que compreensível. É como me sinto também – decepcionado, beirando o indignado. Porém há algo nesses comentários breves que me incomodam. Não sei exatamente o porquê, mas por algum motivo as críticas me parecem tortas.
Passada uma semana, começo a entender um pouco meu mal-estar: um bom tanto porque são críticas superficiais, feitas no calor da divulgação dos novos ministros, que pouco acrescentam. Ok, é o que se deve esperar numa rede social, porém há um adendo: são feitas por cientistas sociais, cientistas políticos, sociólogos, antropólogos, filósofos – alguns de renome na academia tupiniquim –, pessoas que foram meus colegas ou meus professores, ou que têm trabalhos teóricos que admiro. O que esperava eu deles, então? Um tratado sobre o porvir do segundo governo Dilma? Uma tese revolucionária? Não, nada disso. Talvez o que tenha me incomodado seja a sujeição ao meio – e ver sua indignação ter a potência de um traque de criança…
O jornalista Paulo Nogueira, do Diário do Centro do Mundo, seguidamente fala do fim da mídia como a conhecemos: da perda de leitores dos diários e hebdomadários à perda de audiência de Jornal Nacional e novelas, que tem culminado com a dispensa de antigos pesos-pesados da Grande Imprensa corporativa, como Eliane Cantanhêde e Xuxa. A internet e as redes sociais têm papel fundamental nesse rumo da comunicação – não me parece haver o que discutir quanto a isso, no máximo quanto à força e forma do impacto. Nessa senda, algumas perguntas que faço são: os donos do poder – no Brasil e no mundo – precisam seguir pagando para serem defendidos? Precisam distrair o distinto público para manter sua fatia de poder? A decadência da mídia tradicional fará realmente falta, ou o que vem no lugar supre satisfatoriamente os interesses do sistema e de sua minoria hiperprivilegiada? Por fim, um meta-questionamento a este texto: posso fazer a crítica e problematizar o pensamento de pensadores brasileiros a partir de postagens no Facebook, ou estaria sendo desleal ao tratar como público algo que possui seu caráter privado (guardadas as nuances acerca do público e privado nestes tempos de capitalismo avançado)?
Debord e o imediatismo
Não tenho como não deixar de apelar ao autor que estudei, Guy Debord, e sua teoria da sociedade do espetáculo. Seu clássico de 1967 permanece atual, com nada a retificar quando ele fala que o sistema cria seus defensores mesmo entre os que o atacam – no máximo, podemos acrescentar novas formas. A internet, em especial o Facebook, tem assumido esse papel de neutralizador de críticas – ao mesmo tempo em que explodem disputas irracionais sobre pontos secundários. Pois a forma de organização empresarial da mídia tradicional capenga, seu linguajar e seu modus operandi são mimetizados mesmo por pessoas que se pretendem críticas ao sistema.
Uma primeira característica copiada é a pressa, a emergência em emitir uma opinião, de estar up to date do último factoide, de se expressar just in time. O deadline do tema da moda costuma ser breve, não durar sequer 24 horas, logo atropelado por algum novo fato bombástico. Conseguir construir uma crítica consistente, baseada na razão, e não na emoção, em um curto espaço de tempo é algo difícil de ser feito – grandes sacadas são possíveis em meio minuto, porém, em geral, boas análises necessitam um pouco de ruminação prévia. Penso que quando se trata de um assunto realmente importante, faz bem ser retomado quando perdeu o impacto do primeiro momento e não deixá-lo submergir no oceano de notícias que nos afogam a cada segundo. Respeitar o deadline da sucessão alucinada de notícias é compactuar com essa velocidade que nos faz engolir notícias em doses cavalares, sem tempo para digeri-las, para meditar um pouco sobre o que foi divulgado – espectadores hipoativos, eventualmente reativos, que quando reagem o fazem com base principalmente na emoção e num impulso estilo comportamento estímulo-resposta. Virilio já comentava do fato da velocidade e da movimentação constantes serem atributos necessários à sobrevivência do sistema de guerra no qual nossa sociedade se baseia. Parar, esperar, respirar seria já metade da crítica.
Nem toda pressa, contudo, significa coadunar com o espetáculo. Entendo a necessidade de comentar, de falar da decepção, da indignação com algo que recém ficamos sabendo. Encaro essa necessidade como típica do homem moderno, cuja ontologia penso estar calcada no reconhecimento da identidade pelo Outro. Há uma diferença de meio, entretanto, que faz com que esse comentário ganhe outro significado, se comparado ao antigo hábito de conversar à mesa de jantar, do bar, entre familiares, amigos ou colegas de trabalho. Nestes casos estamos em um pequeno grupo e há condições propícias para refletir: em diálogo vivo, com a palavra proferida e necessariamente escutada pelo Outro, esse primeiro sentimento pode ser repensado (para não falar pensado), burilado – ou na discussão com esse Outro, ou na tentativa de justificação, ou simplesmente pelo impacto de dizer isso, de desafogar o que se sente. O efeito na linha do tempo do Facebook ou do Twitter é diverso: não estamos nesse diálogo vivo – o diálogo, quando há, vem truncado, por questão de meio e de etiqueta; os Outros alcançados pela mensagem muitas vezes são pessoas distantes, números de curtidas, e não afetos que mobilizam. Conforme Dominique Wolton, “expressão e interação, por mais necessárias e úteis que sejam, não são sinônimos de comunicação”, e o que menos fazemos nas redes sociais é nos comunicar.
O caso se agrava porque estou falando de comentários de especialistas – colegas desses que a mídia adora chamar para justificar seus preconceitos (quando não são eles os chamados, a depender da linha da publicação) – que são “autoridades” na nossa sociedade hierarquizada, potenciais (quando não efetivos) formadores opiniões. A pressa em publicar tais “opiniões emocionais” impede uma auto (e hetero) reflexão que poderia ser muito útil para um enriquecimento da nossa precária discussão política – se o nível do nosso debate está baixo, não estamos trabalhando para revertê-lo, antes aprovando-o sub-repticiamente.
Consequência do que recém-expus, ganha forma meu incômodo com os comentários sobre o novo ministério da Dilma. Pode ser preconceito meu, mas tive a impressão de que algumas pessoas da minha linha do tempo comemoravam a escolha de Gilberto Kassab, Katia Abreu e afins – algo como um grito de “eu já sabia”. Pessoas do tal voto crítico na Dilma, que parece que deixaram a crítica junto com o voto.
Comentário raso é sempre raso
Qual a importância de comentários óbvios e rasos feito por pessoas tidas por especialistas na área, com formação acadêmica na área de ciências sociais e filosofia, que se põem (enquanto autoimagem) à esquerda? Nessa hora sempre lembro de uma frase da minha mãe: “Quem muito prega, pouco crê”. Seria dúvida quanto à sua posição política, por isso a necessidade de reafirmar sempre, aos seus alunos, aos seus amigos, aos seus colegas, aos seus companheiros de partido, que são de esquerda – continuam sendo de esquerda, ainda não deixaram de ser de esquerda?
O pior, contudo, não é isso: as críticas parecem partir de dois pressupostos bastante preguiçosos (e hollywoodianos): de que o bem e o mal são facilmente identificáveis e de que a escolha de ministros é um ato de pura vontade do governante – tal qual seria sua escolha do modelo de tênis na loja.
Falta um mínimo de análise de contexto: diante de uma vitória apertada, do cerco da Grande Imprensa e de um Congresso conservador (que não se deixe de assinalar que Dilma e o PT têm sua bela dose de responsabilidade nesse quadro), a presidenta teria poder político para bater na mesa e dizer: “Vai ser assim, ponto?” Não creio. No primeiro mandato, Dilma pôs em prática o slogan de Geraldo Alckmin de 2006: assumiu a Presidência com a missão de ser uma gerente, se pôs acima das negociatas políticas. O modelo tecnocrático da presidente fazia sucesso, tanto que ela tinha aprovação superior à de Lula. Caiu com as chamadas “jornadas de junho de 2013”, o demi-golpe dado por uma direita silenciosa e muito bem organizada (enquanto Jabores e Datenas se desdiziam tentando entender o momento, havia quem pensasse e se organizasse para aproveitá-lo).
Se houve um aprendizado de Dilma com as tais jornadas foi a de que a política segue indispensável na política institucional – é redundante, eu sei, mas não é tão óbvio. A guinada à esquerda durante a eleição e agora, com os novos ministros, mostram isso: aquele foi um aceno aos movimentos sociais, um pedido de mobilização política; este, o pedido de auxílio a nomes de peso político, algo que não houve no primeiro mandato, tão logo ela se livrou dos restos do governo Lula (os políticos mais relevantes no seu primeiro ministério, tirando os remanescentes governo do Lula, eram Aloizio Mercadante, Fernando Pimentel, Edison Lobão e Garibaldi Alves). Fazer política, goste-se ou não, é negociar e tomar posição. Poderia ter tomado outra posição, com outros nomes? Poderia. Conseguiria governar com ministros técnicos competentes e pouco expressivos politicamente, eis a questão. Para quem vê de fora, é fácil fazer críticas baseadas nas purezas dos ideais – o próprio PT fazia isso, antes de ser governo. Intelectuais não participarem dessa política pequena é uma coisa, recusarem a aceitar que ela funciona assim, é precariedade de raciocínio ou de formação. E o que fazer quando se assume o poder sem ter feito uma crítica consistente, que englobe as armadilhas desse aspecto nada nobre da política? Governar com os melhores, como verbalizou Marina Silva (e como pressupõe partidos de extrema-esquerda)? O que fazer quando os funcionários da burocracia estatal simplesmente se recusam a acatar os projetos do ministro ou secretário de turno, de modo que nada acontece – salvo a queda do secretário? Essa foi uma das questões que presenciei e não consegui responder nos breves três meses de experiência na Secretaria de Cultura da Prefeitura de Campinas.
Não quero com isto dizer que política é assim e deve-se aceitar, e sim, que formadores de opinião e pessoas pertencentes a partidos políticos e que se creem não-alienadas precisam ter os pés no chão para fazer suas críticas, precisam equilibrar ideais – que devem ser buscados –, com percalços que precisam ser encarados sem idealismos. Slogans e críticas rápidas podem piorar o que já não está nada bom.
Brasil 2014, Weimar 1930?
Cabe também contextualizar a crítica para entender que disparar contra o PT, sem nuançar, é fazer o jogo da direita mais retrógrada. Sim, esse é um argumento que petistas têm usado para calar críticas, como se qualquer uma fosse desestabilizadora do governo, como se o arranjo feito pelo PT fosse não apenas o melhor, como o único possível, e por isso devesse ser engolido com feijão. Uma direita organizada e que já se mostrou disposta a encabeçar um novo golpe não pode ser desprezada. Tampouco pode ser motivo para que se aceite o que o PT faz, com base no discurso do medo.
No Le Monde diplomatique Brasil de dezembro de 2014, Tarso Genro (petista de quem tenho grande aversão) levanta um ponto que vem me incomodando desde antes das eleições, e que tem me feito estudar mais sobre o período, na ânsia de entender minimamente que movimento de direita é esse que presenciamos no Brasil atual, e se podemos fazer analogia com o fascismo ou o nazismo do início do século 20. Genro afirma que sim, e seu argumento não pode ser desprezado:
“O que está em curso no Brasil é mais do que um golpismo eleitoral: é um complexo e pegajoso processo de destruição da Constituição democrática, pela liquidação do prestígio das instituições políticas do país. A diluição da esfera da política com sua identificação absoluta com a corrupção, pela propagação de uma visão pervertida dos partidos, inclusive os conservadores e de oposição – embora estes queiram majoritariamente terceirizar suas funções –, e o esforço pela comprovação da impotência da democracia como processo para abater privilégios e reduzir desigualdades sociais são os esforços centrais dessa estratégia. Quando alguém, aparentemente fora da política, monopoliza a capacidade de produzir a agenda política de um país, a democracia, neste país, está em perigo.
“É importante advertir, porém, que essa agenda é verdadeira (…). O que predomina, pelo menos na conjuntura atual – como ocorreu fartamente na Ação Penal 470 –, é uma suja tentativa de estabelecer uma identidade partidária para a corrupção, e não uma identidade com as pessoas que cometeram crimes ou se aproveitaram de brechas legais (como as causadas pelo financiamento empresarial das campanhas) para obter recursos para seus partidos ou para proveito próprio.”
A crítica rápida parece servir, antes de tudo, para ajudar no desgaste à legitimidade da presidenta eleita – como se a vitória por margem estreita não fosse vitória. Há incautos muitos que movidos pelos slogans de junho de 2013, ainda tentam pôr em prática a mudança pedida, crendo que qualquer mudança é válida – são incapazes de pesar que há mudanças que são um passo atrás e pouco interessam à maioria da população do país.
Ministério decepcionante
Antes de se indignar e lamentar boa parte dos nomes escolhidos por Dilma, convém se perguntar: foi ela a estelionatária eleitoral, ou há um processo mais subterrâneo, capaz de neutralizar os desejos expressos pelas urnas? Reconheço que “desejo expressos pelas urnas” é um termo também digno de questionamento, visto que teremos um legislativo dos mais conservadores – será que nosso sistema representativo representa os reais anseios da população? Por falta de medida outra, não arrisco nenhum palpite. De volta ao executivo: decepção igual tive (tivemos?) com o ministério de Lula I, no qual o discurso de mudança foi preenchido por um quadro conservador do PSDB. Agora em 2014, novamente, diante dos difusos pedidos de mudança das ruas, replicados nas eleições presidenciais, o primeiro passo da presidente no seu novo mandato foi retroceder. Que sistema político é esse que atropela projetos de governantes em nome não de governabilidade – porque Henrique Meirelles e Joaquim Levy não foram imposições do Congresso nem pedido das ruas –, antes de permanência no poder? Em algum “Guia do Mochileiro da Galáxia” talvez uma pista da resposta: presidentes não detêm o poder, eles apenas desviam a atenção do poder (os Estados Unidos já levaram ao paroxismo esse princípio ao eleger um ator para a Casa Branca).
Quanto aos novos ministros, a esperança que sobra é que, com a sua escolha, Dilma tenha certa margem de manobra no legislativo, consiga evitar arroubos golpistas e, principalmente, consiga avançar com pautas progressistas e urgentes em outras áreas – telecomunicações seria uma delas, a principal (e isso, Lula sabia desde 1992, ao menos). Claro, é preciso também torcer para que esses nomes não façam o país regredir em áreas muito sensíveis – preservação de florestas, melhoria do aspecto humano das cidades, os avanços modestos na ciência e na tecnologia. Ao distinto público, outra vez posto em segundo plano por sabe-se lá quais conchavos, não nos cabe acatar passivamente, nem negar por completo o governo: mais inteligente é trabalhar a partir do que há – e não dos que poderiam ou deveriam ser –, e se organizar para pressioná-los de modo efetivo para que atendam uma agenda progressista. A direita sabe disso e já deve ter suas táticas prontas.
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Daniel Gorte-Dalmoro é mestre em Filosofia