A imprensa gosta de polêmicas e bate-bocas. É compreensível, afinal essas coisas aumentam a audiência e ajudam a vender. Um exemplo de polêmica estéril que tem sido promovida entre nós envolve temas e assuntos comumente referidos pelos rótulos de “criacionismo” e “desenho inteligente” (ou “design inteligente”).
Um caso atual envolve a editoria de Ciência da Folha de S.Paulo, talvez a melhor de toda a grande imprensa brasileira. Desde que noticiou a realização do I Congresso Brasileiro de Design Inteligente, em Campinas (SP), entre os dias 14 e 16 de novembro – ver a matéria “Congresso reúne opositores da teoria da evolução; biólogos criticam ‘novo criacionismo’“, de Reinaldo Leite Lopes, publicada em 27/10/2014 –, o jornal tem batido insistentemente na mesma tecla. O texto mais recente a respeito desse assunto talvez tenha sido a postagem “A caixa-preta do design inteligente“, do colunista Maurício Tuffani (21/12).
Não estamos diante de nenhuma controvérsia científica. Trata-se de uma ladainha ideológica, envolvendo desde fundamentalistas religiosos a gurus pós-modernos (ver, neste Observatório, o artigo “O apetite por holofotes“). Não surgem muitas novidades nesses embates ideológicos, de sorte que os mesmos argumentos e contra-argumentos usados hoje reaparecerão amanhã ou depois em outras matérias/artigos/postagens sobre o assunto.
Um parêntesis: entre os dias 16 e 19/11, a Universidade Federal de Viçosa (Viçosa, MG) abrigou um expressivo encontro científico, o II Simpósio Internacional de Ecologia e Evolução (II EcoEvol; ver aqui). Curiosamente, porém, a Folha não gastou uma única linha com o simpósio. Não creio que a razão para esse aparente desprezo tenha sido o desconhecimento ou um surto de provincianismo; suspeito apenas que situações como essa reflitam o verdadeiro apetite da imprensa atual. Diria também o seguinte: não é de hoje que matérias falsamente “polêmicas” (ver, neste Observatório, o artigo “Com quantos ‘efes’ se escreve ‘evolução’?“) são publicadas apenas e tão somente em função do furor que provocam entre os leitores, o que ainda hoje costuma ser traduzido em níveis de audiência mais elevados.
Uma vertente do criacionismo
O desenho inteligente (DI) – às vezes também chamado de projeto inteligente – não é propriamente uma corrente científica, ainda que alguns de seus proponentes sejam eles próprios cientistas. Trata-se, a rigor, de uma vertente pseudocientífica do criacionismo (para detalhes e comentários adicionais, ver SOBER 2007; para comentários em português, ver FREEMAN & HERRON 2009), doutrina segundo a qual tudo-o-que-existe foi criado por meio da ação direta de algum agente externo, o Criador – comumente identificado como o Deus cristão. Vale registrar que o rótulo “criacionismo” não está restrito a nenhuma religião em particular nem caracteriza uma linha de pensamento único e homogêneo.
Uma característica comum às diversas vertentes do criacionismo é o antagonismo que se procura estabelecer entre uma interpretação literal da Bíblia e o conhecimento científico, notadamente no caso de teorias que lidam com aspectos históricos da natureza. A origem desse antagonismo deriva do fato de os criacionistas tomarem as descrições bíblicas – e.g., as que dizem respeito à origem do Universo, da Terra e dos seres vivos – como narrativas históricas precisas, e não como narrativas alegóricas. Nessas circunstâncias, o conflito é inevitável – razão pela qual, aliás, os criacionistas atacam o modelo do big bang, o modelo da deriva continental e, claro, a teoria da evolução por seleção natural (= darwinismo).
Também é bom ressaltar o seguinte: embora a ciência seja um empreendimento social, envolvendo o trabalho e a participação de gente espalhada pelo mundo afora, a predominância ocasional de determinado ponto de vista não é uma questão a ser decidida por vias democráticas. No entrechoque de opiniões, as que sobressaem mais ou as que perduram por mais tempo tendem a ser aquelas que melhor se ajustam às observações. Não cabe reivindicar espaço e atenção para ideias e modelos apenas e tão somente porque eles são defendidos por grupos minoritários. Para ganhar espaço, é necessário ter alguma sustentação empírica; só assim uma nova hipótese poderá ser levada em conta por outros estudiosos.
Apenas mais um guru sectário?
Um nome comumente citado pelos defensores do DI é o do bioquímico estadunidense Michael J. Behe (nascido em 1952), um dos gurus do movimento e autor do best-seller A caixa preta de Darwin (BEHE 1997). Foi graças a esse livro, originalmente publicado em 1996, que o autor granjeou fama dentro (e fora) do movimento criacionista. A obra, no entanto, foi pronta e duramente criticada pelos seus colegas da comunidade científica (e.g., CAVALIER-SMITH 1997).
Na opinião de Behe, certas “máquinas moleculares” encontradas nos seres vivos exibiriam um padrão de organização do tipo “tudo ou nada” – i.e., a falta de uma única peça, tornaria toda a estrutura disfuncional. Entre os exemplos que ilustrariam tal fenômeno, chamado por ele de “complexidade irredutível”, caberia citar organelas celulares, como o flagelo bacteriano e o cílio (= flagelo das células eucarióticas), e certas rotas bioquímicas, como a cascata de reações que resulta na coagulação do sangue humano.
Ainda de acordo com o bioquímico estadunidense, a existência de características irredutivelmente complexas representaria um desafio à teoria evolutiva, pois o desenvolvimento delas não poderia ser explicado por meio de um processo de evolução darwiniana – i.e., como resultado de uma sucessão gradativa de fenômenos ou processos de “complexidade intermediária”, digamos assim. Diante de uma característica irredutivelmente complexa, só nos restaria deduzir que algum outro fator, que não a evolução por seleção natural, estaria operando. Para os criacionistas, incluindo defensores do DI, essa lacuna seria preenchida pela ação direta de um Criador.
Ocorre que, ao longo das últimas décadas, várias características que eram ou poderiam ser vistas como irredutivelmente complexas foram “desmontadas” – i.e., em vez de irredutíveis, certas características se mostraram perfeitamente redutíveis (ver, por exemplo, CAVALIER-SMITH 1997; JIANG & DOOLITTLE 2004; para comentários em português, ver FREEMAN & HERRON 2009). Em outras palavras, a ideia de que a remoção de uma única peça tornaria toda a engrenagem disfuncional tem sido falsificada.
A publicação de resultados que contradizem as suas ideias não tem tido, ao que parece, qualquer impacto significativo nas opiniões de Behe – um “bioquímico cego”, nas palavras do biólogo inglês Thomas Cavalier-Smith –, pois ele continua repetindo hoje as mesmas coisas de quando divulgou pela primeira vez o seu ponto de vista. Essa sua postura deixa os criacionistas – além de boa parte do público leitor em geral – com a falsa impressão de que as opiniões “revolucionárias” que apareceram em A caixa preta de Darwin ainda estão de pé, desafiando o darwinismo. (Essa seria, aliás, a mesma impressão que a Jorge Zahar, editora responsável pela versão brasileira do livro, passa aos visitantes de seu sítio eletrônico – ver aqui. Nesse caso, contudo, suspeito que a motivação seja meramente econômica: chamar a atenção do público e, com isso, garantir as vendas!)
“Adaptações complexas”: um antigo desafio
Embora ninguém goste de ver as suas ideias sendo contestadas, ainda mais quando isso acontece publicamente, o comportamento dogmático ou sectário não combina muito bem com o que se espera de um grande cientista. Não custa lembrar: no âmbito estritamente científico, quando as nossas ideias não se ajustam adequadamente ao que “o mundo nos diz”, devemos corrigi-las ou, quem sabe, substituí-las (ver, neste Observatório, o artigo “Sobre ideias, hipóteses e teorias científicas“). Tampar os ouvidos ou virar as costas para o mundo não nos levará a lugar algum.
Excetuando-se talvez a terminologia e a natureza dos exemplos utilizados, a tese central do livro de Behe nada trouxe de novo. De resto, o bioquímico estadunidense, ao contrário do que muitos dos seus leitores parecem imaginar, não foi o primeiro estudioso a usar a questão da complexidade como um tipo de desafio à teoria da evolução por seleção natural. Em maior ou menor extensão, isso vem ocorrendo desde meados do século 19. Um exemplo clássico, mencionado pelo próprio Charles Darwin (1809-1882), em sua obra A origem das espécies (1859), é o caso da evolução do olho humano.
Cabe ressaltar, no entanto, que vários exemplos levantados pelos críticos tornaram-se eles próprios objetos de estudo. O entendimento atual que temos a respeito do desenvolvimento de várias características (morfológicas, fisiológicas, comportamentais), cuja presença já foi vista antes como um “desafio insuperável”, está associado hoje a uma série de hipóteses explicativas perfeitamente compatíveis com o darwinismo. Esse é o caso não apenas do olho humano, mas também de várias outras adaptações – para uma discussão geral, ver FREEMAN & HERRON (2009); para exemplos específicos, ver HILDEBRAND & GOSLOW (2006) (morfologia), SCHMIDT-NIELSEN (2002) (fisiologia) e CRONIN (1995) (comportamento).
O estudo de características ditas complexas tem tido um impacto muito positivo sobre a teoria evolutiva. Nesse sentido, um marco teórico verdadeiramente importante foi a publicação (duas décadas antes do best-seller de Behe) do livro Adaptações complexas em populações em evolução, do biólogo estadunidense Thomas H. Frazzetta (FRAZZETTA 1975) – obra das mais relevantes, mas que infelizmente jamais ganhou uma versão em português. (Fica aqui, aliás, a sugestão: quem sabe alguma outra editora não se anima e publica uma versão em português desse livro, fugindo um pouco da mesmice que tanto tem caracterizado o universo da divulgação científica entre nós.)
Coda
A explicação para a sobrevivência de certos movimentos pseudocientíficos está ligada, entre outras coisas, a questões sociais e políticas. Nos Estados Unidos, por exemplo, o sucesso do criacionismo parece estar intimamente associado a determinadas ideologias segregacionistas. Entre nós, embora algo semelhante obviamente possa ser detectado, acho que a acelerada proliferação de ideias grosseiras a respeito do mundo natural tem muito a ver também com a nossa fragilidade cultural. Afinal, poucas culturas no mundo parecem ter conseguido o que a cultura brasileira conseguiu: transformar problemas de aprendizagem em atributos genéticos. Pois não é assim que a ideologia dominante transforma o erro, em acerto; a feiura, em beleza; a ignorância, em sabedoria (ou vice-versa)?
Referências citadas
** BEHE, M. J. 1997. A caixa preta de Darwin. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
** CAVALIER-SMITH, T. 1997. The blind biochemist. Trends in Ecology and Evolution 12: 182-3.
** CRONIN, H. 1995. A formiga e o pavão. Campinas, Papirus.
** FRAZZETTA, T. H. 1975. Complex adaptations in evolving populations. Sunderland, Sinauer.
** FREEMAN, S. & HERRON, J. C. 2009. Análise evolutiva, 4ª edição. Porto Alegre, Artmed.
** HILDEBRAND, M. & GOSLOW, G. 2006. Análise da estrutura dos vertebrados, 2ª ed. São Paulo, Atheneu.
** JIANG, Y. & DOOLITTLE, R. F. 2004. “The evolution of vertebrate blood coagulation as viewed from a comparison of puffer fish and sea squirt genomes”. Proceedings of the National Academy of Sciences 100: 7527-32.
** SCHMIDT-NIELSEN, K. 2002. Fisiologia animal, 5ª edição. São Paulo, Santos.
** SOBER, E. 2007. “What is wrong with intelligent design? Quarterly Review of Biology 82: 3-8.
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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª edição, 2014)