O Charlie Hebdo, cuja redação foi alvo de um atentado terrorista em 7 de janeiro de 2015, é um veículo de comunicação de extrema-esquerda. A origem política e artística dos principais nomes do veículo remonta aos anos 1960 na França. É a essa geração original que pertenciam Cabu e Wolinski, que estão entre as doze vítimas confirmadas até o momento em que escrevo este texto, com vários feridos ainda em estado grave. A marca inicial soixante-huitarde – dos participantes dos protestos de 1968 – está impregnada em toda a trajetória do semanário satírico.
O diretor de redação do Charlie Hebdo, Charb, também assassinado no ataque, era parte de uma nova geração de artistas e jornalistas, diretamente herdeira do grupo original. Três décadas mais jovem que Cabu e Wolinski, era ele quem orientava a linha política e editorial do semanário desde 2009. Segundo o jornal francês Libération, foi ele o principal alvo dos terroristas.
Charb é especialmente conhecido por seu engajamento com bandeiras progressistas na França. Atuou diretamente em campanhas do Partido Comunista Francês e da Frente de Esquerda. Preparou o material de divulgação de mobilizações contra o racismo e a guerra. Uma de suas tiras mais conhecidas, Maurice et Patapon, reúne um cão (Maurice) anarquista, bissexual, pacifista e extrovertido, e um gato (Patapon) fascista, assexuado, violento e perverso. Essa obra, de traços simples, se preocupa principalmente em revelar as tensões muitas vezes escatológicas entre as personagens – o cão como aquilo que sonhamos ser e o gato como nos pressionam a ser, diz Charb em entrevista. O nome da tira remete a um dos símbolos do colaboracionismo francês com o nazismo, Maurice Papon, responsável direto pela morte de milhares de judeus durante a II Guerra Mundial. No trabalho de Charb, o alvo era muitas vezes a extrema-direita crescente na Europa, especialmente o Front National (Frente Nacional), da família Le Pen. O ex-presidente Nicolas Sarkozy foi também objeto frequente dos desenhos de Charb, a quem dedicou vários livros de ilustrações.
Liberdade no abstrato
No Brasil, o trabalho de Charb ficou especialmente conhecido pelas ilustrações que acompanham o livro Marx, manual de instruções, de Daniel Bensaïd, lançado em 2013. Aí, apresenta caricaturas sobre o mundo do trabalho, a vida de Marx, os dilemas da esquerda. Há uma charge especialmente marcante, um “aviso” intitulado “Nem todos os barbudos são Marx”, onde retrata o encontro de Marx com um islâmico radical. A mensagem que fica é: não basta a esquerda revolucionária e os extremistas religiosos terem inimigos em comum para estarem na mesma luta. Aliás, Charb não poupava sátiras a todas as religiões.
A partir de 2006, quando Charlie Hebdo ficou mundialmente conhecido por republicar charges cômicas retratando Maomé e ser alvo de críticas e ataques de grupos islâmicos fundamentalistas, Charb adotou como tema central de seu trabalho o Islã. Anticlerical, dizia: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo” – e a guerra e o capitalismo, poderia sem dúvida ter acrescentado. Quando Charb assumiu a direção do semanário, a satirização do Islã tornou-se tão importante na linha editorial quanto a ridicularização do fascismo e das perversões do capitalismo, rendendo várias primeiras páginas do Charlie Hebdo e ataques contra a redação, incluindo um atentado contra sua sede em 2011.
A linha sistemática de sátira do Islã fez com que Charlie Hebdo fosse alvo de críticas por parte da esquerda francesa. Por um lado, as críticas eram justas, pois na tentativa de satirizar o Islã pela esquerda muitas charges acabaram deslizando para abjeto racismo e islamofobia, servindo principalmente de material aos grupos próximos à família Le Pen e sua campanha xenófoba na França. Vale dizer que o mau gosto e os excessos também eram e são cometidos no semanário contra judeus, católicos etc. Por outro lado, havia e há ainda certa perplexidade na esquerda francesa sobre sua posição política em torno do crescente movimento islâmico, o uso do véu em escolas e por militantes, o árabe como idioma nacional. Parte da esquerda combativa francesa via-se diante do problema de não saber “o que fazer” com o Corão. Nesse contexto, o semanário satírico dirigido por Charb marcava uma posição firme, a mesma que tradicionalmente adotara contra instituições conservadoras: a chacota inveterada, atravessando muitas vezes o limite do bom gosto. “Não tenho a impressão de assassinar alguém com nossas caricaturas”, salientava Charb em entrevista.
A sátira ao Islã nas páginas do Charlie Hebdo dava-se a partir de uma leitura progressista, de rejeição ao conservadorismo clerical, diretamente alinhada a posições tradicionais do semanário contra o sionismo, o fascismo, o imperialismo e o capitalismo. Entender o atentado de 7 de janeiro, um dos mais graves já ocorridos na França, apenas como um ataque à liberdade de expressão é uma meia verdade e envolve um grande risco político de interpretação. A liberdade de expressão de Charb, Cabu, Wolinski e a equipe do Charlie Hebdo era um meio para um posicionamento político radicalmente democrático e profundamente progressista, na tradição da extrema-esquerda francesa. O risco de interpretar o atentado como meia verdade é alimentar ainda mais um dos principais oponentes do semanário satírico, o fascismo europeu, e fomentar a polarização entre os extremistas de direita e do Islã. Não indicar os assassinatos de Paris como um atentado à extrema-esquerda – e simplesmente contra a sociedade ocidental e a liberdade de expressão no abstrato – abre espaço para fortalecer aquilo que os jornalistas do Charlie Hebdo mais repudiavam: a extrema-direita. E, como dizia Charb, “a Frente Nacional e o fascismo islâmico são da mesma seara e contra eles não economizamos nossa arte”.
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João Alexandre Peschanski é sociólogo, editor-adjunto da editora Boitempo