Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vera Guimarães Martins

A incompreensão e a perplexidade diante do ato terrorista que massacrou 12 pessoas na Redação do semanário “Charlie Hebdo” incendiou o eterno debate sobre os limites da liberdade de expressão e se desdobrou em controvérsias que vale a pena compartilhar com o leitor.

Começa com a questão de fundo: a liberdade de expressão deve ser soberana a ponto de permitir que uma publicação satírica distribua ofensas a torto e a direito, insultando governos, políticos, autoridades, celebridades, líderes religiosos e figuras sagradas?

A resposta assertiva é mais fácil nos primeiros casos, mas geralmente empaca nos dois últimos, nos quais o argumento do respeito à fé alheia abre espaço para acomodar ressalvas. O problema é que o raciocínio relativizador minimiza o fato de que religiões não são só território do sagrado; são também estruturas de poder, e nessa condição se tornam alvo preferencial de cartunistas. É por isso que se evita fazer humor com negros e homossexuais, categorias identificadas como minorias. Não há mérito em surrar setores mais frágeis da sociedade.

Humor e sátira não se sujeitam às mesmas regras do jornalismo factual. Suas fronteiras são mais elásticas, porque ali não cabe a interpretação literal da mensagem. Reconhecer essas singularidades, porém, não significa endossar o conteúdo do “Charlie Hebdo”, como tentaram mostrar alguns grandes veículos que se recusaram a engrossar a ação política global de repúdio à tentativa de intimidação dos meios, reproduzindo o conteúdo do semanário.

Não houve dissidências entre os três maiores jornais brasileiros, Folha, “Estado” e “O Globo”. Nenhuma novidade no caso deste jornal, que tomou a mesma atitude em episódios anteriores, toda vez que julgou que a liberdade de expressão estivesse sob censura ou ameaça.

No exterior, a situação foi diferente. “The New York Times”, o inglês “The Guardian” e a rede de TV CNN, entre outros, recusaram-se a reproduzir os cartuns ou o fizeram pixalizando detalhes mais pesados. Foram acusados, por leitores e comentaristas, de fraquejar na defesa do princípio basilar do jornalismo.

Acho bom que a Folha tenha reproduzido as charges, mas não comungo da condenação a quem não o fez. Não faz sentido –e é até contraditório com o princípio que se pretende defender– impor a veículos com perfis editoriais, realidades e públicos completamente distintos a reprodução das diatribes de um jornal satírico com 60 mil exemplares.

O “Charlie Hebdo” é uma instituição tipicamente francesa, gerada na maré libertária do maio de 68. Sua iconoclastia e virulência o tornam impensável na maioria dos países, mas não é preciso repetir suas charges corrosivas, às vezes hilárias, outras pueris e insultuosas, para defender seu direito de publicá-las.

A liberdade de expressão absoluta é um conceito ideal, mas, na prática, cada sociedade estabelece seus próprios limites, gerados em acordos, concessões e interdições, negociados ao longo da história. E, mesmo assim, o exercício dessa liberdade é fonte permanente de conflito.

Lutar para ampliar os limites ou para evitar que sejam reduzidos é parte do bom combate. Forçar a uniformização das diferenças, ainda que em nome de causa maior, não.

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Vera Guimarães Martins é ombudsman daFolha de S. Paulo