O que caracteriza o comportamento fascista é a incapacidade de conviver com a diferença. Não importa se essa perversão é praticada numa sociedade dita capitalista ou socialista, se num mundo cristão ou judeu, por quem quer que seja, em nome do que for. O fascismo é o inimigo da cultura democrática, cujo fundamento básico é o direito à liberdade que o outro tem de pensar e agir diferentemente de mim.
O massacre de jornalistas do Charlie Hebdo, em Paris, praticado por islamitas fascistas em nome de dogmas religiosos, foi um crime moral, ideológico e político. Moral porque nada justifica tirar-se a vida de alguém. Ideológico porque manifesto de uma nova barbárie, o terrorismo religioso. E político por generalizar contra o mundo árabe a opinião universal menos atenta aos fatos.
Ao contrário do que deviam estar planejando, os assassinos do Charlie Hebdo, ao invés de amedrontarem os que consideram seus inimigos, acabaram por provocar uma vasta reação planetária contra o Islã, permitindo que floresçam novos preconceitos étnicos. Nada nos diz que esses fascistas representam a totalidade e nem mesmo a maioria dos islamitas de todo o mundo, não é um dogma de sua religião o preceito de que é preciso eliminar os “infiéis”.
Em alguns momentos da história, foram cometidos, em nome de crenças religiosas, graves crimes contra a humanidade. A própria Igreja Católica, uma das fontes da cultura ocidental, incentivou as Cruzadas contra o mundo muçulmano, assim como promoveu a queima de pensadores, cientistas, artistas e opositores em geral nas fogueiras da Inquisição. Mesmo que hoje brilhe à sua frente a estrela sábia e humanitária do papa Francisco, não devemos esquecer os fatos do passado para que eles não se repitam no futuro.
A liberdade é um velho projeto da Grécia clássica, que vem sendo sonhado pela humanidade através dos séculos e progredindo pouco a pouco, a superar costumes e tradições que a negariam. Ela é o encanto de nossa vida, o mais sólido e convincente instrumento de aproximação entre os homens. A liberdade, como dizia Rosa de Luxemburgo, é sobretudo a liberdade do outro.
Perversão emergente
A barbárie cometida contra os cartunistas do Charlie Hebdo não foi o resultado de um momento de paixão; ela foi planejada em seus mínimos detalhes e bem-sucedida enquanto ação militar. Uma estratégia pensada contra a liberdade. Os assassinos estavam dizendo claramente, às suas vítimas e a nós, que, se pensarmos diferente deles e ainda ousarmos manifestar esse pensamento, temos que morrer, condenados a desaparecer da face da Terra. Os jornalistas foram assassinados porque cometeram um crime de opinião, negando-se a pensar do modo que lhes estavam ordenando que pensassem.
Por mais que discordemos das publicações que existem, a liberdade de imprensa é indispensável à sobrevivência da democracia. Cada vez que a liberdade de imprensa é ferida, sucede-lhe um regime autoritário qualquer. Nem sempre a imprensa é nobre e muito menos correta; mas a evidência de sua incorreção não pode provocar a privação de ela se manifestar como melhor entender. Cabe ao julgamento da Justiça e à escolha livre da opinião pública determinar quem tem razão, punir os crimes de infâmia ou a simples mentira.
Quando Getúlio Vargas assumiu o poder por eleição democrática, em 1950, todos os jornais do país, grandes ou pequenos, estavam contra ele. Getúlio não mandou fechar nenhum deles, não fez nada para impedir as violentas intervenções públicas de sua oposição. O presidente chamou o jornalista Samuel Wainer, seu amigo e seguidor, e pediu-lhe que criasse um jornal que o apoiasse, sendo capaz de competir com os que o esculhambavam. Wainer reuniu um grupo de talentosos jornalistas e assim nasceu a Última Hora, um jornal que se tornou o mais popular do país, só desaparecendo quando a ditadura militar acabou com ele.
Através de Wainer, Getúlio estava escolhendo a competência em lugar da força. A tentativa de manipular a liberdade de imprensa através de restrições é uma covardia política, uma tentativa de colocar nas publicações a culpa pelos escândalos praticados no poder. Quem precisa de marco regulatório são os políticos.
Subestimar a gravidade do massacre de Paris é relegar a plano secundário o direito ao exercício da liberdade. Num mundo tumultuado como esse em que vivemos hoje, não podemos reduzir esse crime ao fanatismo religioso de islamitas fascistas. Por trás dessa aparência, germina por aí uma perversão emergente, a circular por diferentes nacionalidades, religiões ou etnias, que se opõe à civilização, ao progresso, aos costumes libertários, ao direito à liberdade. Não podemos permitir que a doença vire epidemia.
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Cacá Diegues é cineasta