Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ninguém quis ser o ‘Pasquim’

Na manhã da quarta-feira [7/1] esta coluna orbitava em torno da figura de Otto Lara Resende; não do jornalista e escritor, mas do Otto frasista, que a certa altura dos anos 70 ou 80, envergonhado com o que aqui acontecia, ameaçou trancar sua matrícula de brasileiro. Pensava usá-lo como ponto de partida para uma divagação sobre o desânimo que tomou conta do País, notadamente depois que a presidente Dilma definiu o elenco do seu ministério. Por volta do meio-dia, a indignação do Otto e o desânimo nacional foram irremediavelmente preteridos pelo atentado em Paris. O mundo parou para ser Charlie Hebdo e eu não tinha por que ser diferente.

Mergulhado na única rede social que frequento, tuitei feito um alucinado, postando mais notícias e pitacos alheios que ilações pessoais; até que me ocorreu fazer uma analogia com o Pasquim que, para minha surpresa, propagou-se como um vírus na tuitosfera. Ei-la, verbatim, em 139 caracteres:

“Foi como se tivessem invadido a redação do Pasquim e matado Millôr, Henfil, Jaguar, Ziraldo, Claudius, Fortuna, Redi, Caulos, Miguel Paiva”.

Hipérbole nenhuma: o semanário Pasquim foi a publicação brasileira espiritualmente mais próxima de Charlie Hebdo, e sua redação também sofreu um atentado terrorista.

Quando surgiu o Pasquim, Charlie Hebdo ainda não existia, mas vários de seus futuros protagonistas já agitavam a imprensa alternativa francesa, nas páginas de L’Enragé e, depois, no ainda mais debochado Hara-kiri, a primeira encarnação de Charlie Hebdo. O humor insolente de Wolinski, Siné e Reiser encantavam sobretudo Jaguar, Henfil e Ivan Lessa. Os franceses desconheciam a censura, podiam praticar livremente seu humor “bête et mechant”, ao passo que seus pares brasileiros, sob o tacão de uma ditadura militar, sofriam, além de censura prévia, toda sorte de pressões e constrangimentos.

Os beleguins da repressão verde-amarela não tinham coragem para entrar atirando numa redação, como os jihadistas fizeram quarta-feira em Paris. Preferiam o terrorismo à sorrelfa, uma bomba aqui, um incêndio em banca de jornais ali, o trivial da covardia sem rosto.

Caixa vazia

Na madrugada de 12 de março de 1970, colocaram uma bomba na sede do hebdô carioca, uma casa de dois andares na fronteira entre Flamengo e Botafogo, na zona sul da cidade. Não havia ninguém na redação àquela hora. Sua carga pesava cinco quilos, o dobro da que destruíra uma loja do Correio da Manhã, na avenida Rio Branco, e as vidraças do prédio de 25 andares em que ela se localizava.

Felizmente, deu chabu no artefato explosivo. Os responsáveis pelo atentado apertaram demais a ligação do estopim com a espoleta, e o fogo não chegou até o carregamento de dinamite e TNT. Além de covardes, os terroristas a serviço dos fundamentalistas do regime militar não primavam pela competência, o que ficou mais do que evidente quando aquela bomba destinada a explodir o Rio Centro, em 1981, estourou antes do tempo no colo de um dos oficiais encarregados da missão.

Após examinar a bomba – não a bomba-neném que matou o sargento, mas a que quase destruiu a redação do Pasquim –, o detetive Penteado, perito do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), afirmou ter sido a maior que encontrara num atentado terrorista. Tinha um cano plástico de 30 cm, ligado a uma lata de Toddy através de uma rosca e de rebites. Estava envolvida por um saco de aninhagem, um papel das Casas da Banha e duas folhas de jornal retiradas do Caderno B do Jornal do Brasil.

Se explodisse, destruiria a sede do Pasquim, matando seu vigia (o doce “seu” Oscar) e a mulher, e provocaria uma carnificina nos prédios vizinhos. Por ser um petardo poderoso, seus estilhaços poderiam ainda atingir um gasômetro instalado a mais ou menos 100 metros do jornal, causando estragos incalculáveis, estimou o detetive Penteado, que ficou impressionado com a técnica adotada no mecanismo da bomba, coisa de especialistas na avaliação do agente da lei.

Os jornais do dia seguinte noticiaram o fato, com maior ou menor grau de solidariedade à vítima. Mas nem o mais solidário deles estampou em manchete “Nós somos O Pasquim”. O jornalista Hélio Fernandes colocou a Tribuna da Imprensa à disposição do jornal para o que desse e viesse. O Dia, de propriedade do presidente do Sindicato dos Proprietários de Empresas Jornalísticas, Chagas Freitas, cujos repórteres estiveram no local do atentado, desidratou a notícia numa nota intitulada “Bomba num quintal de Botafogo”, com o seguinte texto:

“O vigia do prédio n.º 32 da Rua Clarisse Índio do Brasil, sr. Oscar Domingos dos Santos, procurou ontem de madrugada a 10.ª Delegacia Policial para comunicar que um objeto, que ele temia fosse uma bomba de alto poder destrutivo, fora atirada no quintal. Os policiais encontraram um garrafão enrolado num saco de estopa e com pavio apagado. No prédio funciona a Cosa Nostra, editora de um semanário”.

As autoridades ditas competentes não tomaram qualquer providência para identificar os criminosos ou para proteger o jornal, que se viu obrigado a contratar os serviços de uma firma especializada em segurança de empresas privadas, e a ficar torcendo para que entre os vigilantes contratados não houvesse um terrorista fazendo frila nas horas de folga na polícia.

Para a edição seguinte do hebdô, montou-se uma foto da redação (Millôr, Paulo Francis, Jaguar, Fortuna, Tarso de Castro, Henfil, Ziraldo, Sérgio Cabral, Paulo Garcez), todos com máscaras de caveira, acompanhados de uma caixa de uísque vazia. Com a seguinte legenda, escrita, mas não assinada, por Millôr:

“Damo-nos por vencidos, como diria um purista. Até agora ainda não sabemos quem colocou a bomba na Rua Clarisse Índio do Brasil (vocês já repararam no nativismo de nosso endereço?) na madrugada de quinta-feira, 12 de março (felizmente, como sempre, estávamos no bar). Mas já sabemos, naturalmente, a direção e de onde veio o ataque. E sabemos, sobretudo, o que pretendem os agressores. Assim, para evitar qualquer futuro atentado, damos, acima, aquilo que tão ardentemente desejam os terroristas: ver nossas caveiras”. Terror com humor se paga.

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Sérgio Augusto é jornalista, colunista do Estado de S. Paulo