O fanatismo religioso matou hoje um punhado dos melhores e mais ousados caricaturistas franceses, na sede da revista Charlie Hebdo, mas Wolinski, Cabu, Gotlib e os outros não morreram, se transformaram nos símbolos da liberdade de expressão contra todo tipo de obscurantismo. Liberdade conquistada à custa de tantas lutas e que por nós terá de ser defendida.
O atentado não foi apenas contra a revista satírica Charlie Hebdo, mas contra todo o legado da Renascença, dos Anos Luzes, da Revolução Francesa, da vitória contra os nazistas, legado que é a base da cultura, do pensamento livre e da estrutura laica democrática da nossa sociedade.
Ao tentarem destruir Charlie Hebdo. aos brados de Alá é Grande, os terroristas despertaram os franceses, e não só os franceses, quanto ao risco representado pelo fanatismo islamita, seu culto da morte, quanto às leis cruéis e abomináveis dos jiadistas, determinados a destruir os infiéis. Embora circunscritos ao Oriente Médio, onde criaram um Estado Islâmico que espalha o terror, os jiadistas aspiram aumentar sua área de influência, servindo-se de um movimento centrífugo, capaz de criar pequenos núcleos distantes de terroristas agindo de maneira independente.
Foi o caso do atentado contra os esportistas da Maratona de Boston por apenas dois jovens tchechenos teleguiados pelo jargão religioso. E é justamente essa descentralização que torna imprevisíveis e perigosos os jiadistas. Provavelmente, o atentado contra Charlie Hebdo foi obra de uma minúscula célula jiadista. Os ataques podem ser também individuais, como o desfechado contra o Museu Judeu em Bruxelas. Essa fragmentação dificulta a interceptação policial.
Qual a razão pela escolha da revista Charlie Hebdo como alvo? Por ter publicado, numa edição especial, todas as caricaturas de Maomé estampadas numa revista dinamarquesa. Outras revistas européias fizem o mesmo, embora com menos alarde. A edição do Charlie Hebdo esgotou e precisou ser reimpressa. Todos os editores e caricaturistas dessas revistas receberam ameaça de morte, razão pela qual viviam protegidos pela polícia.
A técnica da ameaça de morte contra quem publica textos ou caricaturas considerados ofensivos a Maomé, o Profeta, já fora utilizada contra o escritor angloindiano Salman Rushdie, que viveu grande parte de sua vida escondido, protegido dia e noite pela Scotland Yard. A condenação à morte de Rushdie, uma fatwa, não foi ditada pelos jiadistas (que não existiam naquela época, 1989, e que são de origem sunita) mas pelo fundador xiita do Irã atual, depois da fuga do Xá, o aiatolá Komeini.
Respeito ou liberdade
A representação de Deus e dos líderes religiosos em caricaturas irreverentes era proibida, durante muitos séculos, em muitos países europeus, principalmente católicos, para evitar ofensas ao Papa, porém circulavam muitos desenhos do chamado Deus Pai, como um velho barbudo apoiado num cajado.
À medida que avançou a liberdade de expressão e, tendo em vista não gozar a Igreja de um estatuto especial, começaram a surgir escritos críticos quanto ao Vaticano e seus Papas, acompanhados de caricaturas. Surgiram também filmes representando Jesus e Maria, proibidos em alguns países, como o Brasil que, apesar de reconhecer a separação da Igreja e do Estado, vivia sob a influência da Igreja católica (no futuro serão os evangélicos?)
Neste últimos dois anos, os países muçulmanos tentaram obter do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, a afirmação de se dever respeito às figuras religiosas, com o objetivo de proteger Maomé. Caso tivessem obtido essa declaração, seriam probidas as caricaturas de Maomé e sriam também justificadas as condenações à morte nos países que executam na forca por blasfêmia contra Alá.
As duas últimas tentativas quase saíram vitoriosas (uma próxima ainda sairá) mas foram derrubadas pelos países ocidentais em nome da liberdade de expressão e de que uma lei internacional protegendo símbolos religiosos seria o fim mundial da laicidade. No dia em que o Conselho dos Direitos Humanos, sob pressão dos países muçulmanos, aprovar como ofensa o desrespeito às figuras religiosas, estaremos entrando numa nova Idade Média e se tornarão raros os livros, caricaturas, músicas e filmes criticando ou mostrando tais figuras.
Haverá novos atentados?
Haverá um clima de novos atentados na França ou na Europa? Esse o temor dos governos, sabendo-se que mais de um milhar de jovens fanáticos islamitas foram lutar com os jiadistas na Síria e no Iraque. Durante esse estágio, convivem com a morte e aprendem a matar. No retorno à Europa, poderão querer espalhar o terror e transformar algumas cidades, como Paris, em Beirute nos anos de guerra.
Coincidentemente, estava sendo lançado hoje, em Paris, o livro de Michel Houellebecq, Submissão, um romance contando como a França, em 2022, passa a ter um presidente muçulmano, cujas primeiras medidas são a de transformar a Sorbonne numa Universidade Islamita e de adotar as leis muçulmanas, a poligamia e proibir o trabalho às mulheres, obrigando-as a usarem o véu ou chador.
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Rui Martins é jornalista, escritor, líder emigrante, editor do Direto da Redação