Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Horror em plena Paris

Por volta das 11h30 de ontem em Paris, assassinos vestidos de preto, armados de metralhadoras Kalashnikov e bazucas, entram na redação da revista satírica Charlie Hebdo. É hora da reunião de pauta da redação. Os jornalistas e cartunistas estão reunidos. Os homens atiram. Doze mortos. O atentado mais fatal já cometido na França em 50 anos.

Rapidamente todos entendem que foi um ataque jihadista. Os radicais assinaram eles próprios sua ignomínia: antes de fugirem após o massacre, um deles teria gritado: “Vingamos Maomé.” Uma mulher que testemunhou o fato diz ter ouvido um dos homens invocar a al-Qaida.

O alvo também confirma a pista do terrorismo islamista. Com efeito, o jornal Charles Hebdo, conhecido por suas caricaturas cruéis, engraçadas, pesadas e chocantes tem empreendido um combate contra o delírio islamista. Há oito anos, a revista dinamarquesa Jyllands-Posten publicou “caricaturas de Maomé” e recebeu ameaças terroristas. Logo em seguida o Charlie Hebdo, manifestando solidariedade com a publicação, decidiu divulgar as caricaturas contestadas.

Desde então o jornal francês vem desafiando o terror. Mobilizou todos os seus talentos, sua coragem, para fustigar mensalmente a ignomínia, resistindo às constantes ameaças que recebia. Uma proteção policial lhe foi fornecida.

O último número, que chegou às bancas na manhã de ontem, expressa muito bem esse longo e implacável combate: embaixo de uma charge de Charb lemos esse diálogo: “Ainda nada de atentados?”, pergunta um homem. E seu amigo responde: “Aguarde”.

Indícios

A investigação deve explicar as circunstâncias do crime. Agora os detalhes intrigam. E levam a crer que os assassinos estavam bem informados.

Primeiro indício: a redação do jornal encontra-se num grande imóvel, com um labirinto de portas, corredores. Não é simples encontrar a sala de reunião, a não ser que se conheça bem o local. Além disso, o momento do encontro semanal dos redatores também foi escolhido com precisão, pois nem sempre os jornalistas e cartunistas estão ali.

Um outro indício: é espantoso o grande número de figuras ilustres que foram assassinadas: o economista iconoclasta e notável Bernard Mari e quatro cartunistas que estão entre os mais admirados da França: Georges Wolinski, Jean Cabu e Bernard Verlhac, conhecido como Tignous.

Algumas testemunhas afirmam mesmo – mas não houve confirmação – que eles foram chamados pelo nome e sobrenome antes de serem abatidos.

Outra observação que é válida ressaltar: o ataque foi levado a cabo com armas pesadas, por homens de uniforme preto protegidos por coletes à prova de balas, sem indícios de qualquer amadorismo.

Sobretudo, os assassinos exibiram um profissionalismo que outras ações perpetradas por islamistas raramente mostram. Na manhã de ontem, não houve nada de emoção.

Os radicais em fuga não se apressaram. Nenhum gesto precipitado ou conturbado. Não houve o nervosismo, a exaltação que normalmente os “soldadinhos do terror” demonstram quando operam na Europa e na França.

Alguns especialistas se perguntavam se, nesse caso, não assistimos à ação de um bando de mercenários, profissionais, recrutados para aquele fim pelos chefes jihadistas. De onde viriam? De zonas de combate, ou seja, do Oriente Médio ou do Paquistão, onde não faltam jovens fanáticos bem formados com coração de ferro, músculos de aço e treinados à exaustão.

Havia uma outra hipótese que circulava de forma velada: a jihad, que, aparentemente, nunca esteve tão rica como neste momento, e contrataria até os serviços de verdadeiros mercenários. Se existe efetivamente este conluio (o que pessoalmente muito me surpreenderia), ninguém duvide de que novos perigos nos ameaçarão. Ainda ontem, surgiu a informação que os terroristas são franceses e um deles já tinha sido preso por envolvimento com terrorismo.

Reação

Os temores difundidos, mas sempre repelidos, que circulavam pela sociedade francesa há alguns meses, se confirmaram. Os assassinos estão entre nós. São homens decididos, armados, treinados e numerosos, e podem tentar impor sua ordem de sangue e de ódio. O desafio foi lançado e as autoridades devem dosar sua reação com habilidade e prudência.

O espaço de manobra é reduzido: é preciso convocar o país à vigilância em todos os instantes, porque o perigo é extremo e seria loucura subestimá-lo. Ao mesmo tempo, não se deve ceder ao pânico ou à histeria. É entre esses dois limites que o poder terá de estabelecer suas defesas.

Quanto à indignação do mundo inteiro, não há de que se espantar. Afinal ela não abrange o mundo inteiro. Absolutamente. Ela só perturba o mundo com um rosto humano. Não o mundo com o rosto dos bárbaros. Não esses bárbaros que, como aprendemos na manhã de ontem, nos espreitam em nossas ruas, em nossos cafés, em nossas casas.

Fatos e ficção

Será outra coincidência? O número do Charlie Hebdo que saiu ontem de manhã dedicava a capa ao novo livro de Houellebecq, escritor demoníaco, celebérrimo e provocador. Diversas vezes Houellebecq falou do Islã e do islamismo em seus livros. Ele não media suas palavras. Há alguns anos, numa entrevista, ele disse mais ou menos o seguinte: “É preciso reconhecer que a religião muçulmana é a mais estúpida!” E atacou o profeta Maomé com violência e desrespeito.

Seu novo romance, que acaba de chegar às livrarias e cuja estreia no mercado está sendo fulgurante, gira sempre em torno do tema do Islã, mas com mais comedimento. Ele imagina, no ano 2022, uma França “sem fôlego” que elege para o cargo mais alto da nação, a presidência, um muçulmano moderado, homem sábio e inteligente. Contudo, o regime que ele lidera recorre à sharia – a lei islâmica.

Ele resolve de uma só vez o problema do desemprego mandando todas as mulheres para casa a fim de cuidarem do lar ou dos filhos, liberando assim postos no sistema produtivo etc…

Não pretendo resumir o enredo porque ainda não li o romance.

Preparava-me para fazê-lo ontem de manhã, quando estourou a notícia do atentado ao Charlie Hebdo. Agora, tenho a sensação de que o romance Soumission, de Michel Houellebecq é fraco, esquelético, cansado, ofegante, e que o estilo do escritor é algo “tresnoitado”. Mas, indubitavelmente, será preciso ler o romance até o fim.

Volto à pergunta: acaso a ignomínia de ontem visava, além das insolências dos humoristas do jornal, este escritor de sucesso planetário, Michel Houellebecq, que não mediu suas críticas venenosas ao Islã (não sua pessoa, evidentemente, porque ele não fazia parte do Charlie Hebdo, mas suas ideias?).

Por enquanto, é difícil decidir o que pensar a respeito. Aguardemos.

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Gilles Lapouge é correspondente do Estado de S.Paulo em Paris