Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sugestões no combate aos pernilongos

A edição de domingo (11/1) da Folha de S.Paulo estampou a seguinte manchete: “Pernilongos atacam as pessoas pelo cheiro”. Na versão impressa do jornal, o título da matéria, assinada por Gabriel Alves, foi, digamos assim, menos barulhento – “O começo e o fim da picada”. (A rigor, o título da versão eletrônica variou um pouco. Podia ser “Pernilongos atacam pessoas pelo cheiro”, acompanhado do subtítulo “Praga que prolifera no verão prefere atacar os humanos com metabolismo acelerado”; mas também podia ser “Pernilongos atacam pessoas pelo cheiro, diz cientista” ou “Pernilongos atacam pessoas pelo cheiro, explica cientista”.)

De acordo com os indicadores do próprio jornal, a versão eletrônica da matéria foi um sucesso: foi a “mais lida” e a “mais enviada” ao longo de todo o domingo, ficando ainda entre as “mais comentadas”. (Na segunda-feira, 12/1, a matéria continuava encabeçando a lista das “mais enviadas”.)

Essa repercussão não chega a ser uma surpresa. O assunto é interessante e, dadas as circunstâncias, poderíamos mesmo dizer que se trata de uma pauta das mais oportunas – afinal, apesar da “crise hídrica” que assola a cidade de São Paulo (e algumas outras cidades e regiões), pernilongo é o que não falta no país, nesse momento.

O problema é que a matéria reproduz erros e mal-entendidos. O tom geral da matéria, por exemplo, já é um exagero, pois deixa no ar a impressão de que estamos diante de uma descoberta recente – i.e., a ideia de que as fêmeas de pernilongos culicídeos (insetos dípteros da família Culicidae, incluindo os gêneros Aedes, Anopheles, Culex e Stegomyia – ver, neste Observatório, o artigo “Qual é o nome do mosquito?”) localizam os seus hospedeiros pelo cheiro seria uma novidade. E isso está longe de ser verdade – e.g. REEVES (1951); para detalhes e comentários técnicos (e referência adicionais), ver TAKKEN & VERHULST (2013).

Pistas ambientais e a localização do hospedeiro

Pernilongos conseguem localizar seus hospedeiros por vias diretas ou indiretas, incluindo a exploração de pistas visuais e químicas. O olfato tem um papel particularmente decisivo, tanto na localização de um hospedeiro individual como na escolha de sítios específicos de alimentação, pois nem todas as partes do corpo do hospedeiro são igualmente apropriadas. (Pense no seguinte: qual seria o sítio de pouso mais arriscado para um pernilongo antropofílico, o pé ou a cabeça de um ser humano? E mais: será que esse cuidado com a seleção do sítio de pouso deve ser igualmente observado por todas as espécies de pernilongos, sejam elas de hábitos diurnos ou noturnos?)

Receptores olfativos, localizados em certas partes da cabeça do inseto (e.g., antenas e estruturas do aparelho bucal) respondem a determinados odorantes liberados pelo hospedeiro. Odorantes tendem a se difundir à medida que se afastam do emissor, ocupando e definindo uma coluna de ar comumente referida como pluma. Plumas de dióxido de carbono servem como pistas para inúmeros insetos hematófagos, incluindo pernilongos. Todavia, como o dióxido de carbono é liberado por qualquer espécie de vertebrado, a presença dessa substância não é por si só um indicador confiável da presença e da adequabilidade de hospedeiros individuais.

Outras pistas devem estar sendo exploradas pelos insetos. E é justamente isso o que os estudiosos vêm descobrindo. No caso de pernilongos fortemente antropofílicos (e.g., Aedes), plumas de determinadas substâncias orgânicas (e.g., ácidos carboxílicos de cadeias curtas; ver SMALLEGANGE et al. 2011) parecem ser utilizadas pelas fêmeas como uma pista confiável para localizar um ser humano.

Matéria curta, ilustrações problemáticas

Além do texto curto, a matéria da Folha veio acompanhada de um esquema explicativo contendo sete ilustrações. Há, nessas ilustrações, uma série de erros e mal-entendidos. Senão, vejamos.

Na ilustração 1, lemos: “[…] pupa incubadora do inseto, que cresce na água […]”. Pupas não são incubadoras; elas são a manifestação de uma fase do ciclo de vida desses insetos; além disso, pupas não crescem. Na ilustração 2, lemos “Quinze dias depois”. Não fica claro se o período de 15 dias corresponde a todo o ciclo de vida do inseto ou apenas ao período de desenvolvimento das pupas. Seja como for, em ambos os casos é seguro afirmar o seguinte: esse período está sujeito a oscilações sazonais, ora encurtando, quando a temperatura sobe, ora aumentando, quando a temperatura cai. A legenda da ilustração deveria, portanto, ser mais precisa.

A ilustração 5 fala em “ataques noturnos”. De fato, embora muitas espécies de culicídeos se caracterizem pelos hábitos noturnos, outras são de hábitos diurnos ou crepusculares, sendo que estas últimas podem ser ativas na transição noite/dia ou na transição dia/noite – para detalhes e comentários adicionais, ver KAWADA et al. (2006). A legenda, nesse caso, deveria indicar que a ilustração se refere a uma espécie ou conjunto de espécies em particular.

Por fim, merece destaque o exagero mostrado na ilustração 6. Tentar matar um pernilongo pousado em uma parede com uma chinelada é um duplo equívoco. Por um lado, porque a chance de acerto é relativamente baixa; por outro, porque (acertando ou errando) é quase certo que a chinelada deixará uma marca de sujeira na parede… O melhor jeito de “esmagar” um pernilongo (pousado ou voando) é batendo nele com uma ou duas almofadas – uma, se ele estiver pousado em uma parede; duas, se ele estiver voando. Neste último caso, batemos uma almofada contra a outra – tomando cuidado com os objetos em volta e, se possível, mantendo o pernilongo entre as almofadas… (De resto, não é preciso muita força; qualquer pressãozinha esmaga um pernilongo.)

Coda

Por fim, cabe ressaltar que existem variações. As chances de ataque variam entre homens e mulheres, por exemplo, como também variam de acordo com a parte do corpo. No que diz respeito a este último aspecto, aproveito para registrar aqui uma experiência que estou vivenciando há algumas semanas.

Desde meados da primavera, estamos convivendo aqui em casa (zona rural de um município do sudeste de Minas Gerais) com um número anormalmente elevado de pernilongos. Os ataques são diários e constantes, ocorrendo tanto durante o dia como à noite. (O que me fez suspeitar que aqui em casa nós convivemos com mais de uma espécie de pernilongo.)

Pois bem, em meio a algumas tentativas de enfrentar o problema empiricamente (as quais não incluem a maioria das sugestões mencionadas na matéria da Folha, tais como: ventiladores, velas aromáticas, repelentes químicos), percebi que os ataques que eu sofria diminuíam significativamente sempre que eu calçava um par de meias. E vem funcionando: tiro as meias, os pés são atacados; calço as meias, os ataques cessam ou ao menos diminuem. (Há boas razões biológicas para imaginar que isso deva acontecer, mas essa já é outra história…)

Fica aqui, portanto, uma dupla sugestão ao leitor que, como eu, esteja tendo problemas com pernilongos: 1) no combate “corpo a corpo”, não use chinelos ou sapatos, use almofadas (ou objetos semelhantes, como travesseiros); e 2) sempre que possível, experimente manter os pés calçados.

Referências citadas

** KAWADA, H. & outros 3 coautores. 2006. “Comparative study on the relationship between photoperiodic host-seeking behavioral patterns and the eye parameters of mosquitoes”. Journal of Insect Physiology 52: 67-75.

** REEVES, WC. 1951. “Field studies of carbon dioxide as a possible host simulant to mosquitoes”. Proceedings of the Society for Experimental Biology and Medicine 77: 64–6.

** SMALLEGANGE, RC; VERHULST, NO & TAKKEN, W. 2011. “Sweaty skin: an invitation to bite?” Trends in Parasitology 27: 143-8.

** TAKKEN, W & VERHULST, NO. 2013. “Host preferences of blood-feeding mosquitoes”. Annual Review of Entomology 58: 433-53.

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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª edição, 2014)