Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O incitamento à violência nos comentários

O jornal Tribuna de Minas, diário da cidade de Juiz de Fora (MG), fez uma reformulação em seu portal e agilizou a publicação dos comentários dos leitores às suas reportagens. Contudo, permitiu que o espaço se transformasse num campo de guerra em que os leitores, quase invariavelmente, pedem a pena de morte e o extermínio dos bandidos, além de rechaçarem ironicamente aquilo que entendem por direitos humanos. O interessante é a visão maniqueísta desses leitores que dividem a sociedade entre “gente de bem e trabalhadora” e os marginais, como se não houvesse uma fluidez nestas “categorias”.

Em uma reportagem do dia 7 de janeiro de 2015 (ver aqui), o jornal noticiou que um construtor de 35 anos foi baleado quando dirigia seu veículo Porsche pela Ladeira Alexandre Leonel, no Bairro Cascatinha, Zona Sul de Juiz de Fora, no início da madrugada. Vários leitores comentaram a notícia com a sua carga de violência habitual. Contudo, três comentários chamaram a atenção, pois destoavam dos lugares-comuns e procuraram fazer uma reflexão a respeito do fazer jornalístico e sua responsabilidade ao publicar comentários tão agressivos. São eles:

>> Maria Luiza – A TM é o único jornal da cidade onde podemos acompanhar as notícias locais. Entretanto, não acredito que isso seja motivo para que o jornal aja como os sensacionalistas, permitindo que sejam postados comentários de pessoas estimulando o extermínio da população pobre da cidade.

>> Ramsés – Gostaria de saber até quando o jornal TM será conivente com estes comentários falaciosos que só estimulam a violência…

>> Gilmar – Acompanho as notícias de juiz de fora pelo TM, mas não consigo compreender como o jornal aceita pessoas que se escondem atrás de apelidos e nomes falsos para destilarem comentários inaceitáveis, totalmente preconceituosos contra pobres, defendendo atitudes arbitrárias, principalmente para a parte da população que é a mais prejudicada em tudo: bairros sem atendimento público em saneamento básico, ausência de transporte público de qualidade, ausência de creches e escolas. Não se trata de censura, mas é necessário ter responsabilidade com a publicação de alguns comentários e, principalmente, por pessoas que não se identificam.

A lei e a ordem

A partir deste fato, os comentários dos leitores se tornaram mais incisivos, acusando os autores dos comentários acima de serem coniventes com a violência e com os marginais, como se pode ver abaixo, num breve recorte:

>> Adriana – Eu moro em favela e também acho que nós somos os mais prejudicados. Queremos a bandidagem exterminada, queremos saber o que os vereadores farão para acabar com a bandidagem de vez, sim. Eu quero viver e não consigo. É fácil pra quem mora com segurança de bairro bom falar, queremos olho vivo nos bairros pobres, sim! Não aguentamos mais os bairros pobres infestados de bandidos! Essa molecada não respeita ninguém, a polícia tem que agir arbitrariamente contra eles, sim! É preciso responsabilidade sim, eles só vão entender a linguagem do cassetete!

>> Leandro – Responsabilidade tem que ser do governo, pois todo dia uma pessoa humilde morre vítima da violência em bairros pobres! São os que mais sofrem! Quanto ao comentário dos outros que têm preconceito contra bandido, se o senhor discorda, acha os bandidos bonzinhos, bom pra você, mas respeita a opinião de quem quer ver o fim dos bandidos!

>> Carmosina – Ninguém mais tem sossego com a bandidagem à solta na cidade e existem pessoas mais preocupadas em criticar quem está claramente desesperado por paz na cidade a qualquer custo! E eu apoio também! Carta branca pra polícia executar bandido, seja “di menor” ou não! Perguntem aos policiais se eles querem carta branca? Claro, quem está na reta são eles! Pra quem só fica em casa vendo TV, é fácil falar em desarmar eles! Põe a sua cara na reta!

>> Reginaldo – Impressionante, gente, os caras estão armados, zombando da lei e da ordem, dispostos a matar, enfrentar a polícia e ainda aparece gente falando que o comentário dos outros é que estimula a violência! Como é que pode ser impertinente assim? Não tem nada melhor pra falar?

“Chega de direitos humanos”

>> Karlão, cientista político social amador – Pelo que sei, esse espaço aqui é para as pessoas darem suas mais variadas opiniões não importa o quão pertinentes ou idiotas, correto? Então, vamos respeitar, inclusive eu, que sou obrigado a expressar, nesta ocasião, que sou a favor da pena de morte, controle de natalidade e guarda municipal armada de pistola e polícia militar de fuzil! Essa é a minha opinião! Qual é o problema? Eu sou estudioso autodidata no assunto há mais de 50 anos!

>> Trícia – Pena de morte para bandido já! Porque os trabalhadores já estão sendo executados há muuuuuuito tempo!

>> Carmosina – A Tribuna, a partir de agora, só pode publicar comentário de gente alienada e hipócrita, que está satisfeita com essa zona de morte que virou nossas favelas! Todo dia morre um em bairro pobre, mas ninguém pode falar, não! Comentário de quem está todo dia na rua sofrendo, querendo que a bandidagem pague na mesma moeda a maldade que fazem com inocentes não pode mais, não! Tá combinado?

>> Lopez – Em Juiz de Fora, a onda do povo é defender bandido! Tudo para os bandidos e nada para o cidadão! O cidadão não tem direito a nada, tem que morrer baleado e achar bom!

>> Aparecida – Brasileiro é egoísta e invejoso mesmo! O cara quer andar de carro bom, é baleado por uns vagabundos que pra começo de conversa já estão cometendo crime só de estar armado, o outro cidadão fala que quer ver eles morrerem, aí vem um monte defender os bandidos! É incrível!

>> Katarina – O pessoal que comenta aqui ou é ignorante ou se está de brincadeira com um problema sério, que é segurança, não deveria nem comentar! Me respondam de onde saem os motoqueiros assaltantes que barbarizam a cidade? É sempre de algum morro ou bairro favelado! Agem e se entocam de novo. Isso é realidade, não é preconceito não! A sociedade precisa por fim nisso, e não vai ser criticando quem está exigindo uma ação mais enérgica, e sim, fazer o que precisa ser feito para garantir algum futuro nessa terra sem lei. Chega de direitos humanos e igreja pra bandido! Reza você pra nunca ter o desprazer de estar na pele de vítima!

Olho vivo

>> Raciocímio – Desculpe se a senhora Maria Luiza ou senhor Ramsés não concordam com meu comentário, mas o dia que eles procurarem saber que sou dono de um comércio que já foi assaltado inúmeras vezes, inclusive com arma apontada pra mim, pense que existe gente que não aguenta mais essa bandidagem e clama pelo extermínio, sim! O dia que acontecer o pior com vocês, aí sim, vocês perdoem de coração a bandidagem! Cada um tem sua opinião, realista ou não! Respeite porque um dia você pode ser a vítima! Quem estimula violência é impunidade e a falta de lei e de atitude de brasileiros como vocês, acomodados, e não meu comentário! Grato!

>> Raciocímio – Senhora Maria Luiza, a senhora leu errado, ou entendeu errado! É pra exterminar bandido! Não trabalhador pobre vítima deles, tá! Lê direito o comentário dos outros! Obrigado. Quem estimula a violência são brasileiros passivos como o senhor que estão satisfeitos com o mundo real apenas porque ainda não foram vitimas da violência de bandidos que não pensam nem meia vez antes de exterminar covardemente algum pai de família! Caiam na real, vocês hipócritas! Sejam solidários como sofrimento dos outros, afinal vocês estão sujeitos a morrer também! Não tem que ter pena de bandido não! Só no Brasil é que tem essa idiotice!

>> Tarcísio – Só pra sua informação, senhor Ramsés, quem estimula a violência é um certo governo que há mais de 12 anos ainda não fez nada pra coibir a ação desses “coitadinhos” que merecem viver felizes! O Raciocímio está mais que certo! Chumbo grosso neles!

>> Priscilla – Fico impressionada é como esses bandidos saem lá do buraco onde moram e atravessam a cidade inteira, dois mendigos numa moto lixo e nem uma viatura vê isso! Impressionante!

>> Raciocímio – Tem que colocar olho vivo é na saída de morros, favelas e bairros do Minha Casa, Minha Vida, pois assim quando o “bonde dos vagabundos” sair pra agir, a PM já intercepta e extermina eles antes de chegarem ao centro.

Os critérios do chamado “bom jornalismo”

>> H. Sureiros – Concordo! E não é segregação não, hein… O certo é isso mesmo!

>> Luciana – Apoiado, afinal é de lá mesmo que saem os marginais pra “fazer” quem estiver pela frente sem dó e nem piedade!

A partir disso, fica a questão da responsabilidade social da imprensa, pois se existe permissividade para o incitamento à violência, por que os comentários de baixo calão não são permitidos? Não é usar de duas lógicas contraditórias, já que se permite o incitamento à violência, mas não se permite o uso de palavrões?

É preciso ressaltar que com o advento da internet as pessoas tiveram a oportunidade de expressar livremente sua opinião através do ciberespaço. Contudo, surgiu igualmente a necessidade da responsabilização pelo que se diz. Dessa maneira, é preciso que se considere a responsabilidade por comentários publicados em espaços interativos, porquanto são meios de comunicação cujas informações publicadas podem levar a atitudes de incitamento à violência. A existência de controle editorial prévio é fundamental para a delimitação das responsabilidades e caso um órgão de comunicação, responsável por um espaço interativo, seja avisado sobre um determinado conteúdo ofensivo no espaço por ele controlado e nada fizer para remover a informação, pode passar a ser responsável também pelo conteúdo, por compactuar com a informação ali prestada. Alguns meios de comunicação, como forma de tentar se isentar da opinião emitida por terceiros, colocam um disclaimer [aviso de desaprovação] antes da caixa de comentários, informando que a responsabilidade sobre o que for escrito é de inteira responsabilidade de quem fez o comentário. No entanto, a simples colocação deste dispositivo não isenta o responsável de uma eventual responsabilização civil, pois a página de comentários está também sob sua responsabilidade. O uso dos disclaimers não tem eficácia se houver conivência com a veiculação indevida de fato lesivo, já que a simples declaração de que não é responsável pelo conteúdo que deliberadamente divulgou não se caracteriza como excludente.

O que se está discutindo diz respeito à responsabilidade social da imprensa, cuja origem se dá a partir da filosofia utilitarista e da teoria libertária. A primeira surgiu na Inglaterra e nos Estados Unidos no século 19, e constitui um modelo a ser aplicado às empresas em geral e à imprensa, em particular, baseando-se na crença individualista de que qualquer um que goze de liberdade tem certas obrigações para com a sociedade, daí seu caráter normativo. Por conseguinte, a teoria da responsabilidade social pondera que a imprensa deve servir ao sistema econômico e buscar a obtenção do lucro, contudo, deve subordinar suas funções à promoção do processo democrático e a informação do público. Foi a Hutchins Commission que resumiu os cinco pontos principais a serem cumpridos pelos meios de comunicação que seriam a origem dos critérios profissionais do chamado “bom jornalismo”, quais sejam, objetividade, exatidão, isenção, diversidade de opiniões, interesse público, como se pode verificar abaixo:

** Propiciar relatos fiéis e exatos, separando as notícias das opiniões;

** Servir como fórum para intercâmbio de comentários e críticas, dando espaço para a publicação de pontos de vista contrários?

** Retratar a imagem dos vários grupos com exatidão, registrando uma imagem representativa da sociedade, sem perpetuar os estereótipos?

** Apresentar e clarificar os objetivos e valores da sociedade, assumindo um papel educativo?

** Distribuir amplamente o maior número de informações possíveis.

Esta responsabilidade social é de extrema importância, principalmente na contemporaneidade, em que a midiatização da existência se tornou condicionadora de uma nova forma de presença do sujeito no mundo, porquanto é (re)estruturadora de percepções e cognições, e funciona como uma agenda coletiva do “bios midiático”, conforme conceitua Muniz Sodré, em que é cogente se pensar a midiatização como um quarto âmbito existencial, um novo bios, que alterou as formas tradicionais de sociabilização, além de uma nova tecnologia perceptiva e mental. Enfim, creio que em breve o jornal Tribuna de Minas terá de se responsabilizar por sua conivência com tais atitudes que estimulam a violência em seu próprio bios midiático.

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Ramsés Albertoni é professor e pesquisador