O violento, sanguinário, chochante ataque do radicalismo islâmico contra a revista Charlie Hedbo, em Paris, gerou uma ampla discussão sobre a liberdade de pensar e de emitir o pensamento: o que é, para que serve, se deve ou não ser regrada, principalmente se tem ou não tem limites. Sobre esse último tópico, escrevi em 2004 um artigo em cujo título, ”A liberdade de expressão e o direito de mentir“, buscava vislumbrar a existência ou a impossibilidade de barreiras ao livre exercício da liberdade. Nos tempos que correm, com a internet divulgando as opiniões de milhões de cabeças sem qualquer restrição (verdades, mentiras, maldades, vinganças, achaques), a discussão sobre essa conquista do espírito humano está, mais do que nunca, na ordem do dia.
Discordo totalmente da sua opinião e defendo seu direito de emiti-la: esse é o cânone da liberdade de expressão. Pessoalmente espero que assim permaneça, mas há de reconhecer que as tecnologias da informação e os novos comportamentos que estão gerando levarão essa discussão a níveis antes nunca alcançados. Esse é um aspecto positivo da atualidade, discutir ou rediscutir tudo que está sendo influenciado pelo novo cenário da comunicação e das relações humanas. O que não é positivo é impedir a regulação de serviços públicos argumentando que seus marcos regulatórios são mecanismos contra a livre circulação de ideias. Não é positivo porque uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Energia, água, saúde, educação, transporte e outros serviços públicos estão regulados no Brasil e na maioria dos países, espelhando a necessidade de regras para seu funcionamento, devido ao seu impacto social, e de ordenação legal para sustentar o bom desempenho das ações do Estado relacionados com eles. A mídia, em todas suas manifestações (radiodifusão, veículos impressos, web), é um serviço público de alta potência, com grande influência desde sempre sobre as populações e agora, na era digitalizada, com penetração cada dia maior no conhecimento, consciência e inconsciência dos cidadãos. Portanto, deve ser prestado com base no interesse público, como os demais serviços, e o único caminho para isso é o estabelecimento de regras para seu funcionamento.
A mesma tecla
No Brasil, maior produtor, exportador e consumidor de mídias (de informação e de lazer) da América Latina, há leis que regulam a internet, a TV paga e outros aspectos, mas não uma lei geral (incluindo, por exemplo, a TV aberta). Toda vez que o governo ou segmentos da sociedade demonstram intenção de regular esse serviço de maneira abrangente, as empresas do setor se arregimentam, se unem, para dizer que a intenção é “controlar a liberdade de expressão”. Isso acontece desde a promulgação da Constituição de 1988, não importando as tendências políticas ou ideológicas dos governos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma. Para o que nos acostumamos chamar “grande mídia”, esses governos, já que todos trabalharam o assunto em menor ou maior medida, queriam controlar ou acabar com a liberdade de expressão. Como se todos eles quisessem voltar ao tempo da ditadura. Agora está acontecendo de novo porque a presidente Dilma mencionou o tema em sua campanha e o Partido dos Trabalhadores emitiu uma “resolução política” pedindo a criação de um novo marco regulatório.
Há que esclarecer que os governos, a sociedade, as empresas têm de obedecer à Constituição, inclusive o que está determinado sobre a mídia: os artigos 54 (parlamentares não podem ser concessionários de mídias), 220 (não pode haver monopólio na comunicação social eletrônica), 221 (produção regional e independente devem ser estimuladas) e 223 (complementaridade entre comunicação pública, privada e estatal). Essas determinações constitucionais não estão sendo cumpridas porque não foram regulamentadas, requisito para que passem a vigorar. Não foram devido à pressão da mídia e já lá se vão 27 anos. Há que esclarecer que a regulação requerida trata da organização econômica e geográfica do setor, não interfere nas linhas editoriais das TVs, rádios e jornais. O que busca não é “censurar” e sim o equilíbrio democrático em um setor com grande poder de interferir nas preferências e decisões dos cidadãos e dos governantes.
A mídia está regulamentada nos EUA, França, Inglaterra, Itália, Portugal, México e muitos outros países. Em nenhum deles há queixas de que a ordenação econômica e geográfica tenha causado censura. Mas a grande mídia da América do Sul continua batendo nessa tecla e está conseguindo manter o continente na rabeira do progresso comunicacional. Conseguiu melar o jogo na Argentina e na Venezuela, onde mídias e governos têm a pior relação do planeta (não há convivência inteligente, há guerra) e está conseguindo atrasar o avanço do Brasil no aperfeiçoamento da sua democracia. Até quando?
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Orlando Senna é escritor e cineasta