Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tragédia de 94 ainda mata

O promotor caído no banheiro, uma bala na têmpora e um revólver no chão. Poderia ser a abertura de um clássico do cinema noir, mas aconteceu em Buenos Aires, em área com um dos metros quadrados mais chiques da cidade, e o drama foi argentino puro.

Quando souberam, na semana passada, da morte de Alberto Nisman, o promotor federal responsável pela investigação sobre a bomba que em 1994 destruiu um centro comunitário judaico matando 85 pessoas, os argentinos em meio à tragédia misteriosa tinham uma certeza.

O pior atentado terrorista em solo latino-americano ainda faz vítimas. Nisman seria a 86ª.

A verdade corre o risco de ser a próxima. Se Nisman morreu pelas próprias mãos, como sugeriram alguns governistas – e a própria presidente Cristina Kirchner, antes de mudar de ideia na quinta-feira –, ou assassinado, como suspeita a oposição e boa parte da Bacia do Prata, ainda não se sabe.

Muitos argentinos já decidiram. Foram às ruas de panelas nas mãos para culpar a presidente. Afinal, poucos dias antes, o promotor entrara na Corte Suprema do país com uma denúncia explosiva que tinha como alvo mais destacado a Casa Rosada.

A própria presidente, afirmou Nisman, teria manobrado nos bastidores para inocentar aqueles que seriam os mentores e os executores do atentado: destacados ex-integrantes do governo iraniano e seu avatar operacional, o belicoso grupo libanês Hezbollah.

O surto de clemência seria, segundo a denúncia de Nisman, uma permuta. A Argentina queria trocar grãos por petróleo para amenizar a crise de energia que apertava no início da década.

A troca não vingou, mas os dois países chegaram a celebrar um pacto em 2012 – divulgado no dia do Yom Kippur, para horror da comunidade judaica argentina que até hoje espera a condenação dos culpados do atentado. Os chanceleres até assinaram um protocolo de cooperação nas investigações em Nova York, no dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.

Escolhido a dedo pelo então presidente Néstor Kirchner para comandar o processo de investigação do atentado, Nisman virou sua lupa para a Casa Rosada da Cristina.

Trama

Da Primeira Viúva à Evita de pérolas, a presidente já encarnou vários personagens. Com seu astuto marido, falecido em 2010, aprendeu a bailar conforme o tango ambiente. Um dos passos que dominou é como desconstruir seu inimigo.

Kirchner começou a semana passada com uma convicção. “O que leva uma pessoa à tomar a decisão tão terrível de tirar sua própria vida?” postou na sua página da rede Facebook. Em 72 horas, encerrou a semana com outra: Nisman teria sido assassinado.

Na sua nova versão, a “execução” do promotor seria não para calar uma verdade inconveniente, como acusavam os inimigos da presidente, senão para fabular um complô para incriminar a Casa Rosada. “Usaram-no enquanto vivo e depois precisaram que morresse. É assim, tão triste e terrível”, Cristina escreveu em seu blog oficial.

Cristina não deu nomes aos conspiradores, nem precisava. Seu governo respira complôs em que vilões brotam a cada discurso. Por ser amiga do papa Francisco, teria sofrido ameaças do Estado Islâmico. Após sua queda de braço com os fundos abutres, como apelidou os credores agressivos da dívida renegociada do país, ela vislumbrou um plano “do Norte” (leia-se dos americanos) para eliminá-la.

Remexeu um nacionalismo já caduco quando chamou a Grã-Bretanha de “neocolonialista” pela ocupação das Malvinas, a mesma bandeira que levou a Argentina a uma guerra trágica e o governo militar à ruína.

Quando a inflação disparou e o controle de preços não funcionou, a solução foi tecer dados. Quem, no Instituto Nacional de Estatísticas, teimasse contra a contabilidade criativa, que pedisse o boné ou respondesse aos tribunais. Em vez de silenciar a imprensa crítica, mandou reparti-la, como fez com o Grupo Clarín, sob o verniz da democratização.

Nada disso é novo na terra do kirchnerismo, que já caminha para seu fim. Tampouco as confabulações ajudam a esclarecer a morte do promotor ou sua investigação, que se arrasta há duas décadas. Eis o desafio da Justiça e da democracia argentinas. A alternativa é atentar contra a verdade, a 87ª baixa da tragédia.

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Mac Margolis é colaborador da Bloomberg View e colunista do Estado de S.Paulo