A morte, em Buenos Aires, do procurador Alberto Nisman, amplamente comentada por estes dias, parece saída de uma trama de ficção, dessas que misturam a morte misteriosa e decisiva de um personagem que confronta o poder; uma denúncia que desnuda as ações escusas desse poder; e o pano de fundo de uma sociedade atormentada pela desconfiança e a descrença. Se me perguntam, poderia ser parte de um romance do americano James Ellroy, especificamente de sua espetacular Trilogia americana, que mistura com grande técnica eventos reais a outros de ficção, que desvendam as misérias da política e a corrupção em seu país. O terrível é que se trata da realidade.
A primazia da realidade ante a ficção se torna cada vez mais evidente neste evento chocante que cobrou a vida do procurador às vésperas de sua reunião com representantes do Poder Legislativo para apresentar provas de sua denúncia sem margem para contestação. Como todos sabem, essas denúncias, vinculadas ao atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia) ocorrido em 1994 em Buenos Aires, envolviam diretamente a presidente (Cristina Kirchner), seu chanceler (Hector Timerman) e outros funcionários e incluem mais de 300 CDs de escutas telefônicas. Os governos de Argentina e Irã estão comprometidos, segundo as conclusões de Nisman, parte das quais podem ser ouvidas ditas por ele em uma reportagem do TN (Todo Noticias, canal de notícias do grupo Clarín). Cada fato que ele denunciou é estarrecedor, e sua atitude e firmeza ao fazê-lo não eram as de um homem atribulado prestes a se suicidar.
A primeira coisa que me veio à mente ao saber da morte do procurador é que Nisman morreu porque sabia demais. E esta frase clássica dos romances policiais, que resume em sua formulação concisa um número variável de motivos para morrer, cobrou desta vez um sentido absoluto e verdadeiro.
Ponto final
A relação entre o conhecimento e a morte daquele que sabia se instalou rapidamente na opinião pública, e a subserviência do jurídico ante os embates da política gerou uma vítima subsidiária à morte do procurador: a credibilidade. Desde a segunda-feira [12/1], tudo ficou sob suspeita na Argentina porque há um cadáver que a cada minuto que passa se transforma em mártir pela verdade.
De acordo com as primeiras informações que vieram da cena do crime – e me arrisco a defini-lo assim – tudo parece concluir – segundo a versão oficial – tratar-se de um suicídio exemplar e prolixo, com a porta de serviço trancada por dentro com a chave colocada, e a principal impossível de abrir sem conhecer a senha de acesso. Mesmo assim, sabemos que tudo pode ser manipulado para que algo pareça o que na verdade não é. E, no caso de o procurador Nisman efetivamente ter se suicidado, que pressão intolerável teria sofrido para que, no dia anterior à apresentação das provas de sua denúncia, tomasse uma decisão tão radical sem que uma depressão severa o impulsionasse? Fala-se de um suicídio “induzido”, o qual não deixa de ser um assassinato por tudo o que representa.
Analistas prestigiados e as pessoas mobilizadas nas ruas gritando que “este assunto fede” exigem a verdade do que aconteceu no apartamento do complexo Le Parc, em Puerto Madero. Também pedem que alguém com tanta coragem como o morto, incorrupto e incorruptível, desvende não apenas a morte de Nisman, mas que desenterre de uma vez por todas as repugnantes circunstâncias do atentado à Amia. Na verdade, isso seria o mais importante a resolver para que se ponha um ponto final a uma longa e tenebrosa história.
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Hugo Burel é colunista do El País, do Uruguai, do Grupo de Diários América