Começando pelo principal: ninguém tem o direito de matar.
“Je suis Charlie” foi a reação emocional, espontânea, de milhões de pessoas para dizer não à barbárie, à estupidez. Os sentimentos compartilhados na demonstração massiva reduziram à sua verdadeira dimensão o surfar político de alguns líderes mundiais que marcharam no boulevard Voltaire, em Paris.
Um genocida forçando sua presença, alguns conhecidos algozes da liberdade em seus países e, hipocritamente, como se nada tivessem a ver com aquilo, os responsáveis pela ordem imposta ao resto do mundo, contrária à liberdade, igualdade e fraternidade ali celebradas. “Vomito neles!”, disse Willem, um dos colaboradores do jornal.
A caçada estava em curso. Seriam os promotores daquela tragédia de 7 de janeiro capturados vivos, interrogados, julgados por um tribunal, com direito de defesa como a República garante? Não. Foram mortos.
Era verdadeiramente inevitável? O governo anuncia aumento de efetivo policial, maior controle da população e envio de um porta-aviões ao Iêmen! Bush fez escola. No verso dessa moeda, um novo capítulo: assassinos brutais viram mártires.
Em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, o velho bibliotecário do mosteiro envenenava as páginas do tratado de Aristóteles sobre o riso, proibido pela Igreja Católica. Ao eliminar os que o tivessem lido às escondidas, evitava que pudessem passar adiante seu conteúdo. “A comédia pode fazer com que as pessoas percam o temor de Deus e, portanto, fazer desmoronar todo esse mundo”, era a justificativa. No tratado, Aristóteles dizia: “Talvez a tarefa de quem ame os homens seja fazer rir de verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade.”
Força e coragem
Para Freud, o humor representa a rebeldia contra a autoridade, a liberação de qualquer controle, a alforria do poder opressor.
Ele classifica dois tipos de humor. Um, raso, escrachado, explora características individuais ou comportamentais. Freud o descarta e se debruça sobre o humor que desvela e expõe a natureza das coisas, ataca portadores de dogmas morais, representantes de instituições e ideias sérias, que se creem intocáveis.
A esse humor da palavra, a charge traz nova dimensão visual: usa recursos da linguagem dos sonhos, estabelece referências explosivas de imediata compreensão, reorganiza a realidade desmontando mecanismos ocultos. Sua irreverência incomoda os poderosos. Não projeta o real, propõe outro sistema de explicação da realidade. O público, entre autor e objeto da charge, ri ao descobrir a realidade que estava escondida.
“Ser Charlie” é mais do que defender a liberdade de expressão. É uma afirmação de que as ideias se combatem com ideias melhores, não com armas letais. Pode-se “ser Charlie” criticamente, como se podia ser Pif Paf e Pasquim, cujas mortes aparentemente “naturais” foram atentados ao livre pensar.
O humor do Charlie Hebdo, frequentemente grosseiro, escatológico, de mau gosto, ultrapassa limites, choca. Suas charges sem sutileza e sua linguagem chula, impublicáveis em qualquer outro jornal, continuarão. Elas cumprem um necessário papel de denúncia. Entretanto, Charlie também erra.
Essa arrogância, que menospreza e deprecia o outro, esse etnocentrismo, esse laicismo semireligioso, tudo isso parece ultrapassado no século em que vivemos.
A coragem e a força do humor do Charlie Hebdo terão de se reinventar, atualizar-se, para mirar alvos mais ameaçadores: aqueles que aumentam o fosso de incompreensão entre as pessoas e ampliam as injustiças entre os povos.
Liberdade, igualdade e fraternidade, ou são para todos, ou são palavras vazias.
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Claudius Ceccon é arquiteto, designer, desenhista de humor e diretor do Cecip – Centro de Criação de Imagem Popular