Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Monólogos

Ele não é ministro nem presidente da República, mas toda vez que aparece na televisão fala de coisas que só ele vê e conversa com interlocutores que só existem na cabeça dele. Seu nome é Salvador. Além de clinicamente louco, é personagem de ficção: alucina diariamente na novela Império, exibida na Rede Globo às 9 da noite.

Salvador é um “artista”. Açoita suas telas com golpes violentos, como quem pratica artes marciais armado de pincéis, espátulas e tintas. Quando não está pintando, está falando sozinho, desconectado do que os outros dizem ou tentam dizer. Em seus tormentos pictóricos e verborrágicos, Salvador perambula como um monólogo encerrado em si mesmo e, ainda que não deva ser levado a sério – e ainda que não tenha sido esse o objetivo do autor do enredo –, dele se pode dizer que é uma síntese da comunicação política que aí está.

Não só da comunicação política. Salvador é uma síntese da comunicação social em sentido amplo. Em toda parte o monólogo surdo avança sobre espaços antes dominados pelo diálogo. Cada vez menos um fala e o outro responde. Cada vez mais o sujeito vai lá e estabelece uma conversa consigo próprio, e estamos conversados. É claro que, na política, a arte de monologar superou todos os limites (do ridículo, inclusive). Ano após ano, aumentam as verbas faraônicas destinadas à publicidade oficial na televisão, que não ouve ninguém e só celebra os grandiosos e redentores feitos governamentais. É assim também em outros domínios da vida. Na internet proliferam discursos de ódio, autoritários, que repudiam qualquer argumento que possa contradizê-los. Se uns dizem “Je suis Charlie”, com uma dose de boa vontade, outros reagem, repelem o chamamento à paz e insistem na truculência e na justificativa demagógica da truculência. Entre uns e outros, nenhuma mediação.

Até mesmo na esfera íntima o ato de conversar tem os minutos contados, racionados. Ainda que não se possa generalizar, a sensação é de que as solidões individuais se batem umas contra as outras sem se entenderem em quase nada. Monólogos.

Reza braba

Não há de ser por acaso que na novela Império um montão de gente deu de falar sozinha a qualquer pretexto. Não é apenas Salvador, o doido, que monologa. São todos. Você vai dizer que isso se deve a uma crise miserável do bom texto na ficção de TV, vai dizer que os roteiristas perderam a habilidade de contar uma história por meio de diálogos encadeados, e sem outro recurso narrativo são obrigados a apelar para os monólogos para darem conta de explicar a trama aos pobres telespectadores. Mas não é falta de competência (ou, pelo menos, não é apenas isso). Há um sentido menos óbvio na proliferação dos monólogos na novela das 9, um motivo que tem que ver com o estado geral da cultura.

Admitamos, de saída, que esse tipo de monólogo sempre fez parte da ficção, seja na literatura, no cinema e também na TV. A diferença é que, antes, os roteiristas ao menos tentavam disfarçar. Eram mais cuidadosos. Quando precisavam que um vilão explicitasse suas intenções malignas, davam um jeito de fazer com que ele “pensasse” alto, mas sem mover os lábios. Com isso o telespectador podia “ouvir” claramente o que ia dentro da imaginação do bandido, que não precisava prestar-se ao vexame de bancar o maluco de sair por aí falando sozinho em voz alta. Agora não há mais disfarce. As pessoas conversam consigo mesmas e pronto. Parecem todas psicóticas, como Salvador. O mínimo que nos restava de verossimilhança vai para o vinagre. O “jornalista” Téo segura o porta-retratos com a fotografia do “comendador” José Alfredo e declama: “Ai, que saudade, que saudade” – como se ninguém fosse ouvi-lo. Em outra cena, a “jornalista” Érica comenta para si mesma: “Tô vendo que esse leilão não vai acabar bem.”

Não, não se trata meramente de uma escassez sazonal de repertório dos roteiristas. É mais do que isso. O que a novela Império vem escancarando, mais que um déficit narrativo, é um novo padrão de fala na cena pública, na qual os bordões publicitários, os slogans taxativos e os juízos definitivos, ainda que tresloucados, gritam com mais e mais vigor. Os monólogos da novela seriam, então, um sinal do tempo – e seriam também indispensáveis: sem eles, por mais escancarados e despirocados que sejam, o público domesticado pelos brados de pura certeza iria simplesmente boiar. E iria desligar para partir em busca de lições de moral ainda mais contundentes e mais prepotentes.

Se essa hipótese tem algum fundo de verdade, há desdobramentos que deveriam ser considerados. Um deles é o fetiche da certeza: quem se mostra mais seguro de sua certeza tem mais razão. Na imensa indústria do imaginário, de onde brotam as peças do chamado entretenimento e toda a propaganda política, a certeza vale muito mais que a dúvida e o que indica o grau de certeza é a contundência teatral da fala. Eis por que os corruptos mais notórios são os que mais se aperfeiçoaram na arte de esbravejar: dizendo-se “indignados” com as acusações que os atingem, imaginam estar apresentando uma prova documental de inocência para a opinião pública. E convencem – o pior é que convencem. Sendo assim, quem quer provar que tem razão deve gritar bem alto, a tal ponto que, depois de gritar bem alto, nem será mais preciso ter razão. Logo, se há alguém na TV monologando sem parar, no horário eleitoral ou na novela das 9, tanto faz, esse alguém merece crédito e compaixão. A encenação de fé é o critério da verdade.

As telerreligiões prosperam nessa onda, encenando a transcendência mística (nada pode ser mais obsceno do que essa encenação). Na novela, os personagens que falam sozinhos parecem rezar (uma reza braba), movidos por uma fé inabalável. É isso que comove a plateia e rende audiência, dízimo e voto. Até na novela o diálogo perde o emprego. Dá-lhe, Salvador.

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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP