Foi durante os áureos tempos de pilhagem das riquezas do continente americano, espécie de roubo também conhecido nos livros didáticos por “colonização”, que a época de ouro da pirataria aconteceu nos “mares” do Atlântico. Hoje em dia, num desses vaivéns da história que a tornam divertida, a vida e as aventuras do Barba Negra (Edward Teach, 1680-1718), um dos mais conhecidos piratas da época, podem ser ricamente romantizadas, filmadas e, durante sua distribuição, pilhadas via download.
Uma dentre as várias questões que a pirataria pode levantar – e aqui estamos falando de produtos culturais, não remédios para câncer – é se seria possível entendê-la como uma espécie de luta de classes. Para abrir essa questão, faço um convite a uma brevíssima volta pela da história da filosofia.
Jean-Jacques Rousseau dizia que o primeiro homem que ergueu uma cerca em volta de seu terreno, espalhando que aquilo era dele e encontrando gente ingênua o suficiente para acreditar, foi o fundador da sociedade civil e, a partir dali, iniciava-se a organização social que temos até hoje. O que “JJ” queria dizer com aquela parábola é que as desigualdades entre as pessoas têm como base a ideia de propriedade privada ou, em outras palavras, a velha mania da busca constante de poder e riquezas para subjugar uns sobre os outros. Mais tarde, Karl Marx cunhou o termo “luta de classes”, conflito que envolveria não só economia, como capital e propriedade, mas política e cultura, num embate inevitável entre a classe dominante e as inferiorizadas, uns na tentativa de equilibrar a balança, outros na perpetuação de privilégios. Bem mais pra frente, Pierre Bourdieu, sociólogo atento aos mecanismos que reproduzem as desigualdades sociais, traz a ideia de “capital cultural”, um princípio de diferenciação quase tão poderoso como dinheiro, ou capital econômico. Ele fez um tratado sobre a “produção do gosto”, ou seja (e resumindo muito), o nosso gosto pessoal seria fruto de um processo educativo, e não uma questão de escolha pessoal ou de foro íntimo, resultado de inúmeras e complicadas relações de força que tem como base as várias instituições transmissoras de cultura da nossa sociedade: escolas, família, religião, rádios, TVs, cinema e, claro, jornais. Aqueles que possuem maior capital cultural teriam, de antemão, maior facilidade de manutenção e ascensão de seu status social privilegiado, numa reprodução sem fim da desigualdade social.
Um equalizador social
O panorama dessa discussão não passa, portanto, pelo viés do direito institucional e dos possíveis efeitos econômicos às indústrias culturais (“quantos milhões as gravadoras e produtoras deixaram de ganhar?”), que por si só merecem e devem ter uma análise bem específica. Mas, sim, pela ideia aterrorizadora que essa indústria dissemina: a pirataria pode matar a cultura. Será?
Essa retórica é tão sofisticada como a pré-história. Explico: um outro JJ (agora Jean-Jacques Annaud) diretor do longa A guerra do fogo(La Guerre du feu, 1981), nos conta em seu filme a história de grupos de hominídeos, em fases distintas de evolução, que brigam e roubam entre si algo que lhes é vital: o fogo. Acreditavam que aquela chama era única e protegê-la passou a ser sua principal função, já que não tê-la sob seu estrito domínio significava, ao menos para si e seu grupo, a morte do fogo. A indústria cultural e aqueles hominídeos do filme do Annaud pensam exatamente da mesma maneira.
A cultura é um sem-número de expressões das experiências, passadas e presentes, de um grupo, de um povo. De outra forma: se houve um passado e há um presente, haverá um futuro e a cultura estará expressa nele.
No entanto, enquanto houver hierarquização de classes, haverá hierarquização cultural. A classe dominante se diferencia das demais pelos seus gostos, seus hábitos. Nada funciona melhor na diferenciação e perpetuação das hierarquias do que a restrição de acesso e a porteira que restringe é claramente econômica. É nesse sentido que a pirataria pode atuar como um equalizador social, mesmo que parcial, na medida em que possibilita trânsito a produtos culturais a que a grande maioria não teria acesso, seja por motivos geográficos, financeiros ou qualquer outro meio socialmente coercitivo (como deixar de entrar em determinado local, mesmo estando à porta, por não se achar devidamente adequado às pessoas daquele local?).
“Os atravessadores não dão mais as cartas”
Em recente pesquisa realizada pela empresa de consultoria Price Waterhouse Coopers, o motivo principal para o consumidor deixar de frequentar os cinemas do mundo todo, são os preços. Isso é de uma obviedade tão grande que torna o discurso mais comum em relação à pirataria um acinte à inteligência: “O combate à pirataria só vai funcionar com a mudança cultural do consumidor.” Quantas pessoas podem ir duas vezes ao mês ao cinema, ler seis livros ao ano, assinar um jornal, uma revista, ouvir um musical, ver uma ópera, um show popular, comprar uma ferramenta virtual de acesso ao mundo conectado? Poucas. Entretanto, no dia a dia, ter ou não ter essa carga cultural diferencia as pessoas e tais diferenciações definem oportunidades.
Obviamente que o fato de assistir a tal filme, ver determinada série, jogar um jogo x, ler aquele jornal ou usar determinado sistema operacional não fará de alguém uma pessoa mais admirável ou mais apta a ascender socialmente. Não se trata de falar de indivíduos ou de alguns produtos culturais específicos, mas, de forma mais generalizante, talvez estejamos diante de um empoderamento de classes pelo simples acesso a uma cultura antes inacessível, o que poderia torná-la mais plural e, talvez um dia, menos hierarquizada. Claro, tudo ainda acontecendo de maneira incipiente, visto que o acesso à internet ainda é somente de uma parcela da população, além de protegida, vigiada e, na maioria das vezes, de baixíssima qualidade. Empoderamento que tem navegado na revolução digital, base da pirataria cultural, e que tem visualmente trazido inúmeras transformações ao mudar as formas de acesso, compartilhamento, de produção, trabalho e comunicação, alterando (e aí, sim, individualmente) a interpretação do próprio mundo em que vivemos.
Nota: Uma comparação interessante foi feita por Bolivar Torres, no site Opinião e Notícia: “Não seria absurdo dizer que estamos vivendo uma nova Renascença. Um material antes confiscado pelos monastérios está finalmente ao alcance de todos. Uma vez liberado, forma-se uma nova cultura, novos gostos e tendências, uma tradição. Só que, dessa vez, não são as empresas e a mídia que nos dizem o que devemos gostar ou não gostar. Os atravessadores não dão mais as cartas.”
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Alexandre Marini é sociólogo